Levantou-se tropegamente a calcular, a força de tensão dos pilares – material aço/ferro ainda assim desmultiplicando pelo número de anos da mina que são r com uma rácio de degradação de ( ), sacode, sacode, raciocínio ilógico?, carff coff, os cálculos são óbvios e estão correctos com uma margem de erro aceitável, há uma discrepância na ressonância do som (?), com a impossibilidade de voltar pelo caminho onde (mãos nas paredes de pedra com palma espalmada) por onde vim, [aproximadamente 14 toneladas (possibilidade de agorafobia – 3%)], a mina enquanto local é matematicamente ilógica.; um pequeno susto quando começa a andar , 32 metros pelo comprimento médio das passadas estável, subtil mas uma parede de pedra falsa depois do machado colocado no tronco de árvore fixo, a jaula de metal vazia [3p!(t√r) = 1] suspensa pela corda com quatro roldanas presas em cada parede, se cortar a corda no sítio errado a força gerada – não, as roldanas... – o exercício foi desenhado para ser uma armadilha constituindo através de raciocínio padronizado, sim a própria natureza da mina?, pela queda da jaula que não gerará força cinética suficiente para levantar a parede de pedra e fico preso [ d ], o machado tem de ser a armadilha não é por acaso que, o machado não existe para cortar a corda, a mina ter-se-á adaptado a mim para, mas será que precisamente por isso criou uma anomalia explorando o meu estilo para tentar compreender mas será um ser vivo, mas apenas o Miguelti perceberia as possíveis hipóteses formuladas, bom arranca-se o machado e com destreza despedaça a segunda roldana que faz a jaula cair mas agarra na ponta da corda e com a força gerada atira o machado [S = K! S3 – v2 = K] errado, que corta a corda no ponto da quarta roldana, e agora, rápido, pega no resto da corda e prende-a à terceira roldana, pega na segunda e na primeira trepa não espera ao tronco estica-te e atira calma estarei a ver o peso extra para dentro da jaula suspensa – silêncio; estarei a ver as coisas bem? Fará parte da armadilha ter percebido a primeira armadilha?, com calma pega no machado; e despedaça a ponta da corda presa à quarta roldana, os sons produzidos ecoam no silêncio, não que Vivelti perceba, sendo que o seu estilo de concentração sempre passou pelo absorto, um assustador e desesperante absorto no mundo lá em cima, em três segundos a corda corre rapidamente fazendo cantar o aço enferrujado, a jaula de metal preto onde apenas um homem não caberia de cócoras, a parede – sim, nunca foi suposto levantar-se toda, o machado!, agora! Eu sabia, corre em direcção à porta, (4.327 s.) para se atirar ao chão e deslizar até à parede (0.846 s.), machado em cima a travar (!) raios qual será a madeira usada no cabo e as condições (1.362 s.) enquanto se ouvem as lascas de madeira a estalar, rocha, pedra húmida a meio do seu tronco, para aguentar até ter o corpo inteiro do outro lado, o cabo parte-se Vivelti puxa ainda a sacola com as ferramentas no limite do outro lado, a parede de pedra cai com um estrondo, incorpora-se, faz desaparecer as suas frestas enquanto Vivelti olha para o outro lado, vendo com os olhos arregalados e a boca ligeiramente aberta de novo um novo corredor, igual ao primeiro, com o cheiro inodoro típico dos sarilhos, e o aperto no peito, enquanto olha para trás, e vê a parede fundida com as outras paredes da mina ( p...?), mas eureka,. A mina é ilógica parecendo ser um pesadelo matemático de qualquer espécie, ou a personificação de algo que Vivelti representa – só Miguelti conseguiria explicar-lhe bem o lado filosofico-metafísico do conceito que procurava pôr a descansar em paz na sua mente, será que pode considerar, a luz egrégia? O que é que o professor aconselharia, a lógica permite-me avançar para chegar até ao fim do desafio, pela pressão e temperatura do calcula, não, demasiadas variantes, tenho que compreender com o que estou a lidar, falso/real, mas até o falso tem aqui uma palavra a dizer no mundo físico, e agora de repente chega a mais uma sala, que parece mais um salão, esta é muito maior, embora semelhante à anterior, e um novo desafio matemático/armadilha apresenta-se perante ele, como eu bem sabia, calculava, e há tochas à volta do salão circular a iluminar os objectos, no centro da sala uma fenda com demasiados vértices e demasiadas pontas e demasiados lados inserida no chão. E à sua volta Vivelti reparou que a sala estava cheia de figuras geométricas de tamanhos variáveis. Era realidade quase estática de sólidos. Os seus olhos tornaram-se nele. Havia um ortobirotonde pentagonal e um cubo snub conversando em surdina um com o outro numa das partes do chão, verde-cinza e cor-de-rosa deslavado, e havia uma pirâmide quadrangular giralongada cinzenta preparando-se para canibalizar um icosaedro deltoidal de costas para ela, e havia uma cúpula quadrada azul-chumbo olhando para uma esfera muda, e um cilindro Vivelti não sabia mas consumidor de crack há cerca de duas décadas, num magenta escuro encostado a uma parede e havia ainda uma disposição de hexacontaedros pentagonais em hexagrama, um dos tipos de hexagrama oriental, e Vivelti virou os olhos e a atenção para outro lado da sala, numa mesa que na verdade era um tetraedro truncado, amarela, na besta do lago, uma rotunda pentagonal alongada e uma ortobicúpula quadrada. A conspirar. A sombra da sombra aracnídea da ortobirotonde pentagonal alongada, gigante, por cima dos três sólidos, um aparentemente sem vida, ou sem um propósito que não fosse (ser) mudo. Simulando um peixe: um prisma hexagonal metabiaumentado. Engolindo-se dentro da sua própria força sólida, mas imóvel, apenas numa ideia de tenso: um dodecaedro rômbico. Vivelti levou a mão à sacola, procurando, inexplicavelmente, um tubo em forma de trompete dourado – conscientemente não poderia nunca procurar algo que, a existir, seria apenas ainda conceptualmente – ou uma bomba de fumo, sentindo ainda o toque reconfortante da navalha por baixo da capa. Um batimento, ou batimento – reverberando pelas paredes como se por milésimos de segundo se estivesse debaixo de água, ou, – a sala dava a ideia de estar viva, ou,; não, nada, de novo normal, de novo os sólidos geométricos a imporem-se; Qual será o problema, questiona-se o pequeno matemático; sente as arestas de um triacontaedro disdiakis a afagarem-lhe as costas, e os ombros, mas quando se vira, talvez não tivesse sido o sólido que se tivesse movido, mas ele que perdeu o equilíbrio, de cor amarela, ou verde, ou amarela no seu exterior e verde no seu interior transparente… no chão, a forma de – qual é o sólido. Será que tenho que combinar todos estes sólidos. Será que tenho que os desfazer, ou qual será o sólido que falta. Será que ainda me fala descobrir mais algum sólido entre os existentes, identifico a maior parte dos sólidos platónicos, tais como, e um dodecaedro rômbico, porque uma mulher não é um homem, saltitava; passava pelas areias do mar de areia transparente, invisível aliás, o que assim, sem ver ou perceber, confundia Vivelti, e os sólidos de Arquimedes, e os nomes dos sólidos que lhe vinham à cabeça confundiam-no o seu miasma leve, amarelo, seco como o gelo atirado contra o ar estranho e calmo, icosidodecaedro truncado, rombicuboctaedro, triacontaedro disdiakis, dodecaedro rômbico giro-rombicosidodecaedro prisma hexagonal triaumentado bicúpula quadrada torcida hexecontaedro pentagonal bipirâmide triangular alongada rombicosidodecaedro paradiminuído rombicosidodecaedro bigirodimiuído snub antiprisma quadrado, e alguns destes sólidos ainda nem foram inventados, e alguns destes sólidos ainda nem foram descobertos, sólidos geométricos conspirando, sólidos geométricos indo para a praia de toalha e guarda-sol nas costas e debaixo do braço, sólidos querendo ter tido uma carreira na ópera como tenores mas tudo lhes passou ao lado, sólidos com as suas vozes pulsando das paredes titilantes, sólidos amarelo-torrado ainda na juventude, sólidos roxos com dentes a existirem malvados, sólidos cantando por peixes perdidos e sólidos no remix dessas gravações poli-inventadas, sólidos rebelando-se contra o sistema tentando torcer os seus vértices, sólidos servindo arestas em bebidas, brilhantes e sem quase nada fumegando, em copos de cocktail, com a garganta seca, olhando para montanhas intransponíveis, para os cumes de neve e vento; cristalizando as suas mentes. Escavando a razão até entenderem a sua existência de aquário. Olhando para a parede-porta a impor a ordem, a destacar-se em rocha quase polida pela água, seria seca?, estaria húmida?, Vivelti não percebia. Não sentia pânico, mas apenas uma paz e uma calma derrotada; os sólidos suspiravam alguns, cochichavam outros; tudo ilusão de óptica, girando, girando devagar alguns, sempre, à mesma velocidade, girando, um dodecaedro rômbico aos seus pés; um pião por criar nas suas mãos; sólido como uma ideia – dá-me a solução,, Vivelti dizia para Vivelti. Sê como o peixe com sela; navega e nada pelos mares suspensos no ar, com as suas tempestades a fazerem virar os barcos dos blasfemos e dos pagãos, procura descodificar as origens da parede. Qual é a armadilha. Será a representação de um animal – qual é tempo necessário para degradar os materiais de que são compostos os sólidos? Qual é o meu código pré-definido? Por onde partir quando não se sabe p verdadeiro início? Porque é que estou aqui? Qual é esta vertigem quase doce? Avança. Passa pela parede. E reclama a tua sanidade.
Reclama
a tua sanidade.
E foi assim que Vivelti se viu do outro lado da parede.
“Do diário de Vivelti:
As coisas que nos tornam insensíveis ao nosso redor, e se tornam também elas insensíveis, indiferentes ao nosso redor, como sons espalhados, ainda que em melodia, sobre as paletas tridimensionais do mundo físico e objectivo, quando indecorosas, ou indignadas com a nossa falta de tacto (suponhamos; sim, suponhamos que possa ser o caso) podem rebelar-se, ou darem-se a conhecer das formas mais imprecisas, mas duradouras, que possamos compreender – sendo muitas vezes o seu propósito traduzir-se, como em perspectiva antagónica pura, num exercício ideal dessa mesma imprecisão, um desafio à nossa própria compreensão delas mesmas.
No fim porém, parece só sobrar ruído”
Vivelti voltou a pôr-se de pé. Com as duas mãos, colocou o caderno de couro castanho dentro da sacola. Tentava permanecer objectivo, e imparcial, mantendo a calma face a uma situação dessas. Tentando parar um pouco, escrever no caderno de explorador algo que possa ajudá-lo a relembrar-se do terror que sentiu na Mina do Professor Strutermutter no futuro quando estivesse em casa ajudando-o esse pensamento mas, já era tarde demais como um homem não é uma mulher e um garfo não possui as características únicas e salgadas de medo de uma queda livre já a Mina o puxava e evitava, lograva obtê-lo através do corredor que se comprimia e distendia como movimentos peristálticos, sou eu que ando ou não, e como é que mas tudo com calma e tudo a seu tempo tentava repetir sofregamente mentalmente Vivelti para não se assustar demasiado, embora falhando. Se tivesse a oportunidade, mas não tinha, as suas sinapses estavam a estalar com o característico clique acídico e metalicamente ecoado que dizia, e já estando a preparar-se, problema, um novo problema, subconscientemente semicerraram-se os olhos um pequeno de nada, chegou a uma porta dupla de madeira com laivos escarlates de metal nas extremidades com a frase escrita na madeira que enunciava “FÉNIX FUNK (PROBLEMA) 5”. Entrou. Viu-se numa enorme piscina com as portas a fecharem-se atrás de si (típico) numa sala coberta pelo que lhe pareceram ser azulejos, da base ao topo azuis, nas paredes, e no meio uma enorme piscina cúbica que Vivelti não sabia identificar. A aágua era azul, e a aágua era aágua + aágua. No centro da piscina, e ao fundo, encontrava-se um enorme ovo. O ovo da Fénix, talvez. Vivelti não sabia nada de criaturas da mitologia que tivessem a propensão de, talvez, serem reais. A aágua estava quase imóvel como todas as águas, e a divisão de azulejos e piscina não tinha mais nada a não ser estar coberta de azulejos, uma piscina, e um ovo de Fénix dentro da piscina; imóvel; adormecido. Chegou-se à borda da piscina. A aágua quieta flutuarejava no tecto de azulejos. Como ressuscitar a Fénix e fazê-la emergir do seu fogoso casulo, agora apagado? Vivelti caminhou pelas bordas da piscina, observando. Parou para pensar, e de pensar. Até ao fim da sala, foi. Da sala húmida, do aquário. Na outra extremidade, chegou às portas que aparentavam parecer estarem fechadas. Os laivos de metal eram, nesta porta, de metal. Depois de segurar nos batentes em forma de braços unidos, de cada lado, de ambas as portas, testou a sua força, abanando-as. Não estavam fechadas. Abriu uma das portas (a esquerda) viu que a mina continuava como sempre tinha continuado, vermelha, amarela, pouco iluminada com luzes a penderem do tecto, saiu da sala e fechou a porta atrás de si, sem se virar para trás. Tinha continuado.
O MINOTAURO DEGOLADO E OUTROS ESTRATAGEMAS
Foi por esta altura que Vivelti passou, no corredor, pela cabeça de um touro com a língua de fora cortada e pregada a uma tábua de madeira, um troféu de caça de alguma espécie. O seu pé partiu também uma pequena caixa transparente de um material semelhante ao vidro, que não vira abandonada no chão. Por baixo da cabeça do Minotauro, com os seus olhos expressivos ainda quentes; do seu pêlo castanho e preto ainda algumas gotas caíam, estava uma placa de latão (latão.) com a inscrição Minotauro Pargamasso, de quem foi obtida a justa recompensa pelos seus serviços inúteis. A placa estava ainda fresca e sem sinal de contaminação pelas forças que moviam a mina, ou então ele faria parte dela como conceito indissociável. Mas não fazendo parte – como se, em vida, embora um Minotauro, a existir, tivesse feito parte da aparente anormalidade que povoava um sítio destes, onde coisas que Vivelti consideraria não serem possíveis o eram de facto, agora morto ganhava uma nova frescura conceptual; livre, ainda, do jugo de realidade que a Mina parecia impor – até, por suposto, às coisas inanimadas. Vivelti decidiu arrancar a placa de latão com a inscrição – que, apesar de já ter sido manufacturada por forças na mina, estava ainda fresca ao toque, como já fora dito, parecendo reluzir como um farol bem forte na escuridão que era a confusão externa que Vivelti, dos seus olhos ainda protegidos com rudes espectoscómetros (Vivelti usava um dos protótipos; Miguelti declinara por não gostar de adornos oculares, e o professor Strutermutter exibia em frente das córneas o modelo final, mais elegante e com possibilidade de visualização de ondas rádio por curtos períodos de tempo, antes de as baterias colocadas acima de ambos os lóbulos das orelhas se gastassem). Pô-la na sacola. Agarrou-a bem ainda com força, antes de a largar. E continuou até o corredor se dividir, virou à esquerda e continuou até que o corredor se dividia de novo, e virou à direita. O corredor dividiu-se de novo e virou à direita. E depois o corredor continuou em frente e a descer até nova encruzilhada e Vivelti decidiu virar de novo à direita. A mina contorcia-se, exibia por vezes as características marcas de unhas nas paredes, tinha lâmpadas fundidas pelo meio, e, por vezes, havia ameaças de estalagmites, mas nem um cogumelo, uma aranha, um verme ou sons naturais além das pedras a rolar, da poeira a ser comprimida pelas solas das botas de Vivelti, dos pingos de água a estalarem no chão, do som inquietante da água a escorrer por algumas paredes polidas. A mina simplesmente descia, dava voltas como um intestino, e parecia crescer a cada passo que Vivelti dava. E Vivelti supunha estar perdido. Talvez a Mina tivesse desistido de si, e quisesse matá-lo fazendo-o andar até à morte por corredores infinitos, entrecruzando-se uns nos outros. O fio de Ariadne que tinha consigo era apenas a sua mente, que voava com as dúvidas normais de cada ser – as suas, particulares, eram próprias – e depois se refastelava na desistência normal de quem não compreende e decide simplesmente aceitar. Sobrevivendo, assim, somente pelo seu espírito de irreverência.
Talvez, pensou, a Mina não seria a Mina que estava à sua frente, mas podia ser um mar, uma visão de mar. Com Vivelti a observar de um promontório, ou de um banco de areia, a uma distância não perto demais. Ainda a ver a água cinzenta em revolver-se em beatas de espuma, brancas, atiradas contra o céu sem Sol, nublado, em ondas. E nesse mar e nessa praia o céu estava rasgado de nuvens frias e quase pretas, num contraste de rosa à frente do céu. E podia sentir-se pequeno, se fosse só ele e o mar. E ele e as ondas a bradarem contra as rochas, a pararem sem vida na areia, sem ninguém. Com as gaivotas apenas, a voarem contra essas nuvens cor de chumbo, pretas quase e a destacarem-se, elas pretas também, como Vs no céu rosa e de rastos amarelos de outras nuvens abandonadas, ainda a guardarem a luz do Sol perdido, esquecido. Ou porque eram pretas, podiam ser corvos. Vivelti não podia saber; os pássaros voavam alto demais, em círculos. E não havia ainda estrelas, e talvez a Lua estivesse escondida. Invisível também, atrás das nuvens, a espalharem-se contra todo o céu, solto, sem nada a não ser céu, sem edifícios ou falésias mais altas a taparem-no. Só céu e mar, com Vivelti, podendo imaginar os corvos. Um deles com língua cortada, um qualquer. Voando em círculos, lá em cima, com as gaivotas. Um reino silencioso entre o mar e o céu, e um homem. Não há maneira de atravessar, disse-lhe o corvo, que pousou no seu ombro, atrás de si, podia imaginar Vivelti. Como dizendo-lhe, Saí de lá, e agora sinto o vento do crepúsculo, agora sinto a salinidade que é selvagem, e ouço o estrondo, o ribombar das ondas contra a areia molhada, contra as rochas ásperas e pretas. E mesmo assim não posso atravessar o mar. Dar a volta e deixar a praia para trás. Em breve será noite, e cairá a escuridão. E ficarei perdido outra vez. Mas talvez possas sair daqui, disse-lhe o corvo. Este céu rosa desfeito, e rasgado pelas nuvens escuras – esta paisagem desolada, sem nada, que se criou. Este mar oceânico, com as ondas vivas, constantes. Como. Tiraste uma placa de latão com uma inscrição da cabeça decepada de um Minotauro. Tiraste os teus óculos para ver os pássaros, lá em cima, a voar. Sim, a voar em círculos. No fim deste crepúsculo. Por momentos deixei-me apenas observar. Mas não sei nadar. E não tenho um barco. Voltar é apenas relativo, disse-lhe o corvo. Sim, talvez seja verdade, disse Vivelti. Mas não consigo ver. Ainda é complicado. Não entendo. Este mar esfria-me o peito – está aqui, é real. Já não estou na Mina. Mas como ainda andar para a frente? Como atravessar – sair –; Estás a ver a placa de latão que tiraste, instruiu-lhe o corvo. Usa-a. Como? Vai até à praia, disse-lhe o corvo, à areia molhada, que encontra a espuma gorgolejante das ondas, e usa-a como uma pá. Tira o maior bocado de areia que conseguires, e atira-a ao mar. Depois, põe a placa de latão em cima do lugar onde a areia caiu no oceano, e ela tornar-se-á num barco. Embarca nele, e usa-o para atravessares o mar. Mas não poderá haver uma tempestade no mar que me faça virar, ou na noite cerrada que cair, perder-me, sem saber para onde navegar, no céu sem estrelas? Será o barco seguro? Não te irás perder nem cair ao mar para te afogares, nem perderás o tino ao teu trajecto, mesmo sem pontos cardeais, assegurou-lhe o corvo. Com esse barco, chegarás ao outro lado.
Vivelti olhou para cima, ao vento forte da praia. As aves ainda voavam, em círculos, no céu, lá em cima, mas eram já poucas. O rosa do céu desfalecia-se ainda mais, perdendo-se cada vez mais o crepúsculo, e os resquícios dos últimos farrapos de luz moribunda. Era já menor. A noite estava quase a cair. E olhou de esguelha para o corvo pousado no seu ombro, de penas pretas. E tu vais vir comigo, no barco, até ao outro lado? Não vou ir contigo; mas existo dentro da tua imaginação. Aparecerei do outro lado, sempre que me chamares. O seu olho amarelo olhou para Vivelti, que olhou para ele. O corvo falante piscou-o uma vez, abriu as asas, e levantou voo.
Vivelti ficou a vê-lo subir até ao céu, junto aos outros pássaros marinhos.; mas perdeu-se depressa. A escuridão era agora quase total. Vivelti foi até à areia fosforescente. Sentia-a partir-se, húmida, contra as suas botas, sentia a aragem da água atirada contra o corpo e a cara, enquanto tirava a placa de latão da bolsa. Enterrou-a na areia, com força, e levantou-a antes de a atirar contra as ondas, deixando cair bocados de areia, misturados com espuma e água. Atirou a areia contra as ondas, e o mar já lhe chegava ao tronco, quando tentava aproximar-se da areia, e da placa de latão, a servir de casco, ou vela a faiscar no fim do crepúsculo.
Nanou. Nadou até ao barco. Sentiu as roupas molharem-se entre o frio. Na água preta da noite. O barco era feito de madeira, com um mastro, e uma vela cinzenta. E assim ficou perdido no mar. Logo, a costa tornou-se invisível. E a água que sentiria na cara e no corpo podia ser da chuva, ou do mar encapelado. E como estava. O vento soprava, forte, de todas as direcções. O barco oscilava, e balançava, como a casca de uma noz, perdida no meio do oceano. A tempestade instalou-se, entre o barulho ensurdecedor do vento e do mar. As estrelas apagaram-se. E Vivelti, cego, sem nada ver, para se orientar, só podia agarrar-se às cordas do mastro, tentando navegar um barco sem rumo. Fustigado pela chuva intensa. Atirado de onda em onda, subindo, caindo no mar. Submergindo. A corda, agarrada a uma das mãos. Só o barulho do vento e da tempestade, na escuridão, sem luz. Ecoavam-lhe o barulho de campainhas, por vezes. Os seus olhos estavam fechados com força, e as suas mãos tentavam agarrar a corda, enquanto o vento o tentava levar. O mastro abanou, a vela rasgou-se. O mastro partiu-se. O barco girou descontroladamente, de vaga em vaga.
E
Vivelti não sabia dar o nome à tempestade. Não era uma palavra nem um número. Não era maligna ou esotérica. A chuva torrencial, o vento ciclónico, as vagas gigantes nada lhe diziam
ou
murmuravam. Eram só ondas, numa tempestade sem nome, sem designação. As palmas das mãos estavam em sangue. Num tufão de vento foi atirado para fora do barco. E o seu corpo ficou suspenso no ar. Entre a chuva, com a mão esquerda ainda a segurar a corda, presa ao barco. Esperou o contacto com o mar, afogar-se, no meio da escuridão, nas ondas grossas: dentro da água, dentro do mar. Na tempestade. A escuridão dizia-lhe que estava a cair em direcção ao céu, mas finalmente atingiu a água e o barco despedaçou-se, agarrando ainda uma corda já presa a nada. Foi arrastado pelo mar, pela tempestade, entre o oceano, para o infinito do preto da água. Atirado de onda em onda, de vaga em vaga, dentro do mar, debaixo de água, caindo, descendo, deixando o barco para trás.
Adormeceu.
O dia seguinte saudou-lhe as pálpebras gretadas, cheias de sal - agora falso. Os lábios estavam rebentados, e o seu corpo jazia, de bruços, na pedra polida e húmida da mina. Ou seria um rochedo? Pareceu-lhe ter uma visão de um brejo, com urzes, e outras plantas, e troncos de árvores mortas, a saírem das águas estagnadas de um pântano, com um Sol a cegá-lo de frente, de uma luz amarela e brilhante, e verde-limão... com... laivos de luz talvez a emitirem sons... a entrada de um pântano...
Estava de novo na mina. A sua mão ainda segurava a corda inchada de água, que dava para o barco. Tentou levantar-se. Um pouco atrás de si, os restos de um barco destruído e esfacelado encontravam-se no chão. Passara para o outro lado. Mas onde estava. E onde estava o corvo? Corvo? Corvo? Olhou em volta. Apenas mais uma gruta. Mais uma galeria, ou mais uma caverna, saída nos dados. Esta era apenas um salão com uma porta como a das igrejas, ao fundo, em madeira vermelha. O tecto tinha as suas normais dezenas de metros, o comprimento da galeria também. Onde estou? Que sítio é este? Que sítio é este? Corvo... Corvo
Levantou-se. Trôpego, desorientado. A sua capa ainda estava molhada. As memórias recentes estavam a atormentá-lo. A Mina estava viva, como ele.
Pela primeira vez desde que entrara, sentiu-se inseguro. Sozinho, abandonado, com fome. Sem nenhum Tigre Azul à vista ou saída. Sem nenhuma razão concreta para estar ali.
Encostou-se a uma parede, enroscou-se na capa, e espiou a porta, ao fundo. Imóveis os dois, assim ficaram por algum tempo. As dunas de areia ao pé das paredes envolveram-no, e o espigão salgado onde se sentara, com o cansaço, ameaçava desfazer-se. A sede tomou-lhe a boca, enquanto o Sol subia, pulsando no tecto da mina, desvanecendo-se entre as ondas de calor, e vapor seco, e os olhos, quase se fecharam. Contra a areia que cortava o colo. Cortando el cuello… A garganta secava e a capa quase que esvoaçava, parada, no vento imóvel laranja do deserto. Os montes de areia poeirenta, vermelhos e laranja contaminavam o céu pálido, falso. A porta estava, no deserto, demasiado longe – longe. Atrás das dunas, perto, mas longe como as montanhas ondulantes, visíveis apenas como riscos desvanecidos.
Os lábios gretaram e a consciência retornou, quando teve a força mental de perguntar – porque o seu corpo não o queria,. Há quanto tempo estou aqui? O calor cozinhava-o. A cabeça pendia-lhe em pluma, caindo, em direcção ao chão, à areia fina e amarela. Uma mão em ferida, seca e queimada de agarrar na corda do barco, encontrou na sacola o seu cantil de água. Evaporou-se em contacto com os seus lábios sequiosos. Secos e sibilantes, como a palavra. A matemática era, agora, fácil. Ia morrer. Ia morrer se não mudasse. Ia morrer se não vencesse a insolação, a insolação inexistente e a ilusão, e caminhasse no deserto fulgurante, cuja luz reflectia-se da areia, e lhe incinerava as pálpebras, lhe queimava a pele, o deixava delirante. Com o canivete, rasgou a capa, em gestos imprecisos – dir-se-ia que esbracejava apenas, lentamente, as mãos pelo ar,, e fez um turbante. Esperou, então, nos limites da sua consciência, que a noite chegasse. E esperou meses. Deixando-se bater pelas ondas de calor ondulantes no seu corpo queimado, e enterrar-se, lentamente, pela areia que fazia a sua travessia no deserto, passando por si, enterrando-lhe as mãos, os pés, nas dunas, chegando-lhe aos antebraços, invadindo-lhe o nariz, e por fim tornando-o dormente aos sons, ao entrar-lhe nas narinas, e parar-lhe a respiração, repousando à entrada dos pulmões, secando-os. Nos seus lábios transformados em pedra. Repousar debaixo de um fino manto de areia. Até sair da sua condição de estátua e renegar o manto de calor como objecto avulso no deserto sem nome, e sem ninguém.
Até que a noite caiu como uma gravidade roxa, no céu. Os seus olhos iluminaram-se com o clarão roxo e as estrelas, aflorando atrás do céu, perto do espectro azul-escuro do fim do dia. Os seus membros descalcificaram-se. O seu sangue voltou a correr, como se não fosse calcário dentro do seu corpo. As suas roupas começaram a mexer-se, a esvoaçar um pouco no ar. Os farrapos que lhe restavam. E a sua cara voltou a mexer-se também. E ficou noite no deserto.
Levantou-se no meio de uma enorme imensidão fluorescente de pedras, areia, dunas, e noite fresca, fria, parada no ar, como se também ele próprio estivesse morto. E disse, voltando a cair de joelhos, pendendo-lhe a cabeça, descontrolada, com um safanão.
- Corvo.
Com pequenos assomos do Professor e do seu amigo, lembrando-lhe algo que era suposto saber.
- Corvo…
O deserto roxo queria transmutar-se. Vivelti, sabendo-o, talvez também o quisesse. O frio da noite lembrou-lhe de uma ave negra a voar, até ás imensidões de um céu numa praia ao pé de uma falésia. E antes disso até um labirinto onde se perdera, onde quisera encontrar alguém, descobrir uma coisa.
- Corvo
As paredes arranhadas na Mina por um desconhecido animal. As salas, as galerias, os problemas, os seus amigos. O cantil de água, de repente, cheio de novo, na sua sacola. E a sua capa intacta ainda, com o turbante que fizera a pertencer-lhe a um outro momento, atrás de um sonho – os espectoscómetros ainda nos seus olhos, a filtraram a luz do lugar onde se encontrava, e a dar-lhe um tom verde, brilhante na noite. O deserto roxo e as montanhas desapareceram com o número de passos suficiente que deu. Não foi como um sonho consciente, em que tivesse voado pelos lugares que percorrera, ou imaginado apenas que a ilusão que ocorrera tinha-se tornado realidade, passando por ela pelas normais contracções temporais do delírio, e do sonho. Somente estava em frente às grande portas vermelhas, ditas já como as de uma igreja, de madeira, prontas a abrir, deixando-o passar para outra parte da Mina, mais perto ou mais longe de encontrar os seus amigos, mais perto ou mais longe de perguntar ao Professor, se o encontrasse, porque tinham de facto vindo ate aqui, não saberia ele os perigos existentes neste local, e porquê, porquê procurar o Tigre Azul se ele estaria aqui, perdido no meio de figuras geométricas com personalidade, corvos falantes, paisagens e lugares tão verdadeiros quanto as suas próprias sensações, armadilhas mortais, criaturas mitológicas mortas ou adormecidas como um grande sarcasmo ás suas próprias existências, e ainda não tinha visto nenhum tigre, azul ou doutras cores, onde se esconderia ele, e porquê aqui, e porquê a sua importância, nesta Mina, neste lugar onde o espaço e o tempo se mesclavam de maneiras diferentes para, juntos, em sintonia ou guerra aberta, presentearem quem aqui se intrometesse com o seu estilo próprio de Realidade?
Antes de abrir as portas e sair, decidiu olhar para trás. Estava apenas num salão, cuja outra extremidade possuía uma abertura na rocha polida, com lâmpadas a iluminarem o tecto, algumas partidas, presas a um cabo preto pregado ao tecto, um salão simples, com algumas estalactites no alto, algumas poças de água no chão em depressões, um rapaz, e duas portas idênticas, dando para outro lugar qualquer, desconhecido. Imprevisível.
Ligou os espectoscómetros. À sua frente, a imagem da Mina desapareceu, sendo substituída por, através de um aparelho meramente mecânico entre o ar à sua volta e a íris, apenas estática.
TUPAC E A ESFINGE
As portas davam para um corredor onde, após Vivelti o ter percorrido alguns minutos, revelava-se largo, quase recto, coberto, no chão, e encostada à parede, da mais variada tralha. Vivelti observava os montes de objectos sem lhes tocar enquanto caminhava, com interesse, e a cautela já própria de não saber o que esperar da razão de aquelas coisas estarem ali. E – mas o que era toda aquela quinquilharia.? Tudo o que poderia imaginar continha exemplares naquela parte da mina, para trás, no entanto, toda despida de coisas. E aquilo lá ao fundo em eco a vir da escuridão em formato ligeiramente arritmado e rápido, algo circular parecerão ser passos; e a mina não parecia, ainda, ameaçadora. À medida que percorria o corredor – espalhando-se por dezenas, dezenas, centenas de metros. A indecisão de render-se ao desinteresse de remexer nas centenas de objectos que estavam no chão da mina e continuar a andar para encontrar o Professor e o outro idiota, na necessidade de encontrar uma saída (ou reavaliarem o plano que os tinha levado até ali, desta vez, com a reafirmação veemente de Vivelti, pelo menos, de estar a par de tudo), ou deixar que o vício de assimilar conhecimento de todo o tipo o vencesse estava tornar-se um maior desafio do que o que esperava. Para onde iria, sabia e não sabia; só havia um caminho, convenientemente mal iluminado lá para a frente. O corredor continuava com luz própria – desta vez eram tochas – e o limiar de escuridão era mais curto ainda, que Vivelti apenas consideraria como remotamente estranho; e encostadas ás paredes, ou pingando para o chão, os montes de tralha iam persistindo, revelando-se enquanto caminhava. Bonecas e pastas apertadas com cordas a transbordarem papéis amarelos e encarquilhados da humidade. Utensílios para a cozinha e sucata. Caixas, algumas abertas com livros, outras com mais tralha, algumas mais pequenas com discos transparentes incrustados, pedaços de metal deformado e material de laboratório partido, artefactos e objectos de navegação, comandos, estatuetas de metal ou barro, transístores, armas castanhas e granulosas de ferrugem, mobília escavacada, peças de olaria em cacos. Ia andando lentamente pelo corredor, olhando em volta. Vivelti começava a estranhar,
Mas ainda antes de reflectir que fazer com tudo o que se deparava à sua frente na sua caminhada, ou pensar em poder usar algo do que ali estava para o ajudar a sair dali, o ecoar arritmado de passos fez-se ouvir. O ecoar de passos estrambólicos, imprecisos, urgentes, abafados pela distância, mas passos de humano, os primeiros passos que ouvira desde que entrara na Mina, quem seria? Vinham na sua direcção, do único caminho existente. Sentiu uma ansiedade que, desde que entrar na Mina, ainda não tinha sentido antes. Levou a mão à sacola – ainda intacta com todos os seus pertences. Agarrou na única maçã branca que possuía.
“Do diário de Vivelti:
Encontrei um negro que dizia chamar-se Tupac depois de me ter separado dos meus companheiros, o primeiro ser humano que vejo desde então, o meu interesse e a minha ansiedade, como sugerindo que talvez anos ou meses, quando na verdade não é assim, se teriam passado desde o meu último encontro com um ser consciente da minha espécie afigurou-se-me correcto de sentir e supor, depois de todas as minhas atribulações neste local estranho como as costelas nuas de uma corça acabada de degolar, onde até Tesla perderia a esperança de inventar algo para o tirar deste lugar, eu penso. O seu discurso era incoerente mas falou-me de si –
”
- Quer água? Estou a oferecer, mas estou cansado, e talvez nos possamos ajudar um ao outro a sair deste lugar… escolho sentar-me. Como estava a dizer, que…
- Hã? Ouviste-me?
A Vivelti, Tupac parecia-lhe um profeta. As introduções foram feitas com os resquícios de sanidade que ele duvidara existirem na Mina por alguém, escapando à morte e sobrevivendo, como dizia, por tanto tempo, falando-lhe do amigo, da conversa que tiveram, avisando-o dos perigos que poderia encontrar, apresentando-se como um amigo, revelando todas as falhas e inseguranças que seriam de esperar numa verdadeira pessoa naquela situação. Fizeram uma fogueira com material inflamável que encontraram nos montes de tralha; Vivelti acendeu-a com o seu kit de acendalhas portátil. Ficaram algum tempo a descansar, e a conversar, apesar de Vivelti ter que ter insistido para que Tupac, bastante inquieto, se sentasse. Tudo o que de normal haveria para ser dito pareceria mundano.
- Então, veio do futuro.
- Se tu dizes que estamos no ano de 1908, vim do futuro de certeza, e parece que ando a recuar cada vez mais no tempo.
- Como é que ainda não conseguiu sair daqui?
Fala Tupac –
- A Mina – é o nome que lhe dou – é a Mina. Não será completamente real, real, talvez, no sentido que tu e eu lhe damos; no sentido de ser real nesta realidade, mas sim numa
outra, onde nós, aí, seríamos a ilusão, presa por estas mesmas forças a esse plano existencial. Não consigo explicar. Se fôssemos filhos do céu – sim,, o que seria este mundo sem as nossas próprias percepções? Alienígena. Ou inventado. Ou um sonho que se arrogará o... direito de ser real por estar, de facto, criado nas nossas caminhadas celestes enquanto filhos dos céus, mas... Talvez seja apenas uma ilusão, porque não pertence a esta realidade, mas somos nós, perfeitamente vivos e pensantes, que a justificamos ainda. E o que é que, ao fim e ao cabo, justifica a nossa própria existência, funcionando como prova, como certeza? Apenas nós próprios, enquanto certeza de nós mesmos. Sem a presença de algo nosso, do nosso real, cairá certamente nos meandros do esquecimento, ou deixará de existir, ou de ser percepcionada por alguém desta Terra. Pensei muito nisto, ao percorrer estes corredores e estes salões, estas grutas. Eu vou-te contar. Sim, as notícias da minha morte foram largamente exageradas – mas verdadeiras – consoante as provas físicas que de mim tiveram. Estarei morto de certa parte em certa forma, sim; mas persisto enquanto prova viva de mim próprio. Já ouviste falar no hipopótamo cor-de-rosa...? Não baixo a voz porque estamos muito, muito longe dele. E aqui o seu poder é diminuído. É a promessa de um poder, talvez... – mas aqui, sussurrou. – Ele não manda neste lugar.
- Não... não ouvi.
- É normal. É um demónio. Se calhar já o viste até – oh. – com roupas humanas numa figura humana, fora da Mina. Mas... não, talvez nunca o tenhas visto. Mesmo que o visses não saberias se seria mesmo ele, a não ser que ele te interpelasse. Falasse contigo, te fizesse uma proposta.? Mas aí terias de ser importante para algo ou alguma coisa que nem eu entendo perfeitamente.
- Mas o que é que ele pretende?
- Matar o Tigre Azul. Apanhá-lo, e matá-lo e destruí-lo e despedaçá-lo e torturá-lo de todas as formas possíveis, enquanto o devora e o reduz a nada. na ode mais perfeita de poesia física à violência que poderás supor que exista. Como uma autêntica verdade. Podendo portanto perguntar, se será ele próprio a personificação da...? – mas, não interessa,, acabar com ele até que nada mais reste dele. Nem sequer uma memória. Ouve-me – disse, calmo, agarrando-lhe os ombros, estando sentados lado a lado – eu desapareci do mundo de fora, desde mil novecentos e noventa e... seis... desde então...? sempre esta pergunta, dos... quantos anos? – o seu olhar vagueou pela escuridão sempre presente no limiar do conhecimento dos caminhos que os chamavam no silêncio dos seus percursos, túneis e corredores escondidos pela Mina, grutas e passagens – e ainda não o encontrei. Ando a encontrá-lo para ele. O Tigre Azul. A noite estava... sim claro que ainda me consigo lembrar. E estava no carro – ou a sair do carro – ? Por vezes perguntei-me muito no passado, se não estaria já a romantizar...?, mas depois porém, sim eu lembro-me que a noite é real não foi irreal existiu e o resto também as balas... Bom. Dispararam sobre mim. Tiros e tudo na noite na rua. Caí na luz fria das lâmpadas e não sei se foi já aí que eu já estava, aí... como aquelas manchas verdes e azuis contra essa noite que senti quando caí e me virei será que... Que podia – bom. Tu sabes. Que podia um preto como eu fazer. Já estava morto antes de estar morto,; considerado. E mesmo assim... senti o calor de algo... foi aí, o calor, de um poder demoníaco junto de mim. Longe mas fazendo parar...ou inverter o tempo numa fúria sem nome irresistível, como um silêncio tão mudo que rebentasse as barreiras da própria compreensão desse conceito... mesmo pela minha espinha acima e orelhas e tudo, pelo corpo todo, eu sentia as balas, e não eram as balas. O poder demoníaco. Mal caí. Estando já caído ou devendo já estar morto, não sei, como te disse. E sentia o meu corpo húmido. Isso já das balas – o peito a fundar-se dentro de mim, numa depressão, como uma, uma corda de dor vertical pelo meio peito afundado de baixo para cima, que era o meu sangue, ou mimetizava o meu sangue... ao mesmo tempo, o – tu não sabes a morte. Aumenta-te uma espécie de gosto a vinagre na boca. Tanto mais que tudo se despede num vazio como se desprezasse até o facto de achares que algum dia podia ter existido... numa segmentação rápida demais, e devia ser assim para o resto, e sim mesmo assim eu morria, mas mesmo assim... o calor estranho, o que te tinha falado, com uma suavidade que eu não imaginei, como uma certeza, diabólica. Uns instantes finais que não deviam ser finais, assim pelo menos não finais, assim... que mesmo que eu - ? mesmo eu a morrer pela primeira vez. Eu sabia. Uma pessoa sabe, sabes. Sabia que não devia estar ali, já ali, assim, a experienciá-lo enquanto me sentia a morrer, rápido, girando-se essa certeza sobre a minha própria... tontura final. Já – foi há tantos anos... – suspirou – Tu sabes o medo incompreensível , quase louco que sentes quando sabes que estás a segundos de morrer; não. Quando o teu próprio sangue está marcado com o destino imediato dos objectos. Apenas carne no chão, carne com a minha forma. Carne com a minha forma.
- O senhor morreu...?
- Não. Quem me dera. Não tenho medo. Mas não – não. Ainda estou vivo, é bom saber que ainda tenho a certeza de estar vivo. O tipo do Freud tinha razão na cena da... – mas mesmo assim porque... cansei-me, percebes, foi assim; e ainda estou. É uma hora malvada, a que vem depois da que passa. É tudo o que tenho. Mas e depois também penso, e se as balas, sim?, se as balas podes perguntar-te tu e eu também me questionei disso muito antes de agora, não eram também dele, a sua face naquelas pontas ocas que furaram a minha pele e me explodiram dentro do corpo projectadas, já a rirem-se, em riso das metralhadoras e das pistolas, todas com o seu nome e empunhadas no coldre por – também ele?, sim, e, também esse calor, antes e depois, essa sensação, essa malvadez na noite, essa malignidade no todo acontecer das circunstâncias que me levaram à minha morte? Pelo menos as balas... pelo menos o seu dedo esteve contido nesse...singular acto diabólico. A rir-se – a infectar-me no peito com a sua maldição superior a mim, o meu peito desfeito pelas balas. Hm, com o seu nome e o seu riso e a sarjeta. Caí do carro., estaria já aqui, na Mina nesta altura? Foi o meu corpo transportado para a Morgue e era outro Tupac que ficou entre o passeio e a berma da estrada a ser seduzido pelo hipopótamo cor de rosa? O hipopótamo cor-de-rosa. Disfarçado de humano, ou na sua verdadeira pele? Disfarçado não, ele não precisa de disfarces. Era ele, e aquela era a sua verdadeira face. Não – não ouvi do Tigre Azul logo nessa altura, aliás quais serão os planos dele para mim a existirem; nunca senti nada dele. só senti o calor. o calor maligno com a aproximação do hipopótamo – como o prenúncio de coisas terríveis. S. Sempre aquele calor. Mas tocou-me ou falou-me, e eu parei de morrer. Ou fiquei morto definitivamente, mas era já outro eu, o outro que permanecia na sarjeta, e eu que permanecia na sarjeta, ambos baleados mas um tocado e falado pelas mãos e sorriso de um hipopótamo cor de rosa, e o outro não.
“ a minha cabeça aberta. O peito afundado no meu sangue. Na espuma do meu sangue. E o hipopótamo estendeu-me a mão. No último momento. Estendeu-me a mão, antes do último segundo, antes da eternidade... parou a evolução do meu sentimento de morte. A Mina, disse ele. Não, ele não disse a Mina. O que disse... : pronto, fez a proposta. Ou talvez como se estivesse predestinado... talvez fosse suposto eu estar aqui. Mas só estou à procura do Tigre Azul... vi-me aqui. Num corredor escuro, depois da proposta do hipopótamo. Ganhar de novo a minha vida, caminhando para o desconhecido, tentando encontrar o Tigre Azul.
- Ele disse-lhe como era?
- Fui avisado que teria muitas formas – Tupac coçou a cabeça rapada, molhada. Brilhava à luz amarela, afastada, das lâmpadas asfixiadas pela escuridão. Muitas formas. Talvez eles... sejam irmãos mas.
- Irmãos?
A escuridão parecia estar a apossar-se deles, e invadia-os agora, por fora, até deixarem de se ver, e sentirem a claridade baça da luz como pontos fugazes, ao longe, cada vez mais indistintos...
- Tupac...
- Eu sei. A luz. É normal. A Mina vai encher-se de escuridão agora.
Até que Vivelti só distinguia os controlos de Tupac, sentado ao seu lado. O corredor deixara de ter princípio ou fim. As paredes dissolveram-se, apagando-se notando-se cada vez menos quanto maior era o esforço de ainda as encontrar. Eventualmente deixaram de existir. E as lâmpadas eram agora sóis de galáxias distantes. Estavam sozinhos no Universo.
- A Mina vai voltar a mudar – disse a voz de Tupac, perto de Vivelti. E eu vou voltar a perder o meu caminho. As pistas que seguia. É esta frustração permanente. E depois ainda vai vir aí a Hetero-esfinge... – O Tigre Azul – o caminho para o encontrar não começa aqui, começa no pântano.
- No pântano?
- É aí a sua casa – ou foi o que o hipopótamo me enganou. Mas começa no pântano. Na Mina há um pântano perdido, no início ou no fim dela –
- Tem de ser no fim – apontou Vivelti, centrando o seu olhar nas luzes, demasiado distantes – eu vim de onde a Mina começava. Eu e os meus amigos.
- No fim, então – com indiferença à informação de Vivelti, como sabendo que era mentira – e é aí que está a sua casa. Ou é aí que o posso apanhar, encontrar, entregá-lo ao...
- Mas – questionou Vivelti – como é que sabe sequer que o consegue apanhar, vencer? Capturar
- Quem é ele? – questionou Tupac – Não é? Também não sei. Mas é a minha única alternativa não renegar as respostas a essas mesmas perguntas. A minha única esperança. Entrar no pântano – qual era o nome do ... – e encontrá-lo
- Mas... E se o hipopótamo o enganou? E se o Tigre Azul não está aqui na Mina, nem no pântano?
- A minha busca continua, mesmo com o hipopótamo também a tentar encontrar o pântano, ou a tentar viver nele, ou para encontrar a minha saída e fugir.
- Fugir. – A minha saída?
A escuridão começava a desaparecer gradualmente, até ser de novo substituída pela penumbra, e pelos contornos do chão, do tecto, das paredes molhadas e polidas, ou secas e pontiagudas, princípio e fim, num túnel estreito onde, provavelmente exactamente a meio, se encontravam. Os dois estavam sentados no chão, com as mãos apoiadas nos joelhos, e nenhum deles tinha desaparecido. Tupac, porém, mexia-se o menos possível, como se tivesse medo de se descolar da imagem tridimensional, fixa, onde se encontrava, e nãoconseguisse encontrar o caminho de volta para figurar, como era suposto, no retrato.
- O pântano... – Murmurou Vivelti.
- O pântano – disse Tupac, levantando-se, estendo-lhe uma mão. – Queres vir comigo?
Vivelti olhou para a mão estendida, e a cara fez um estranho esgar de dor.
- Para onde? Para o pântano? Procurar o pântano? O Tigre Azul?
- Sim
- Não posso. – respondeu, a levantar-se – se esteve aqui todo este tempo sem encontrar uma saída, ou um pântano, ou o Tigre Azul, como eu, achas que faz mesmo sentido ir consigo procurar o que quer que seja? Eu
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“Do diário de Vivelti
O silvo que se fez sentir na Mina fez com que – ou teria sido ela causa ou efeito, não o sei – as paredes se, talvez expandissem, e uma criatura com vestes e impregnada em si mesma de simbologia egípcia, com cerca de 6,74 – 6,80 metros de altura, conjurou-se à nossa frente (desenhos pormenorizados da criatura em anexo 56), e, apesar de já ter passado aqui por algumas situações de – por serem tão distantes da normalidade – terror absoluto, nunca ele terá sido tão forte como quando vi que as suas intenções eram, caso não jogássemos o seu jogo, assassinas; uma esfinge, de nome Hetero-esfinge, conforme Tupac me disse depois, o jogo é o mesmo de todas as esfinges naturalmente, e nessa consideração a informação de Tupac vai no sentido certo, a pergunta era ao mesmo tempo que nos perseguia e nos tentava matar com o seu chicote gigante e os seus raios oculares incineradores entre a vida e a morte o que se encontra, e Tupac correu e fugiu tal como eu mas a Hetero-esfinge finalmente apanhou-o entrelaçando o chicote no seu tornozelo e atirando-o violentamente contra a parede, e bem Tupac saiu-se maravilhosamente com todas as concussões que poderia ter como consequência e gritou encontro-me a mim mesmo, a Hetero-esfinge falou – e quando digo falar há que fazer aqui uma nota, ela falava, mais uma vez recordo o meu amigo do qual eu me separei que poderia mais facilmente descrever a forma como falou esta esfinge – as suas palavras não saíram propriamente da sua boca, mas entrecortadas de diferentes lugares, do próprio ar que ela secara com a sua aparição – inclusive verifiquei em mim uma hemorragia nasal como consequência – e foi tudo, desapareceu voando e dissolvendo-se contra a própria parede, sendo que o que se seguiu foi a explicação completa de Tupac do que tinha acabado de se passar, posterior ao estado completo de choque em que se encontrava e referindo que é perseguido, por esta esfinge em particular, desde que está na Mina, e que ela faz-lhe sempre uma pergunta à qual ele não sabe responder, sendo como bem se sabe e no seu caso particular não seria excepção, a morte certa mas que quando está sempre prestes a morrer liberta uma qualquer filosofada de primeiro grau de gosto duvidoso, e a esfinge entende a sua resposta como verdadeira e parte, sendo que é que o próprio medo que o impede de formular uma qualquer resposta apesar de como me disse desconfiar, há já muito, muito tempo, que poderia bem dizer o que quer que lhe apetecesse que a esfinge provavelmente, aceitaria sempre tudo como uma resposta suficientemente certa ao que lhe perguntara, nisso mesmo assim, não me meto. Assim a esfinge desapareceu e consegui compreender esta explicação vinda de Tupac em completo estado de choque;
“
- Gostas de ácido sulfúrico?
- Hã?
- De ácido sulfúrico. Gostas de ácido sulfúrico?
- Eu? Se gosto de ácido sulfúrico?
- Sim. – Disse-lhe Tupac, com um estranho brilho nos olhos – de ácido sulfúrico. Gostas? De ácido sulfúrico?
- De – não. Não, não –
Tupac exalava um cheiro intenso a limão (quase doce) da careca preta cheia de gotas paradas de suor, enquanto fitava o chão parecendo estar a tentar ouvir alguma coisa.
- O que –
E assim Tupac partiu. Preferiu fugir a matá-lo, supôs. Fugiu a correr. O resto das conversas que eram suposto ter tido Vivelti não
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pôde supor lamentar. Não o sabia, mas Tupac era perseguido por fantasmas. Vozes que Vivelti não ouvia e um modo de estar e de existir que não entendia. Virou no corredor que se bifurcava num poço escuro profundo numa névoa de carne vaporosa e outro que estava carregado de estalagmites estupidamente irregular.
Irregular.
Do diário de Vivelti, pensou escrever: fiquei sozinho outra vez.
Algo caiu do tecto. Parecia mel. Era pegajoso e amarelo só, e doce. Sentiu o líquido lento pelas mãos e os dedos colaram-se, enquanto um vento diferente - . Quando voltou a olhar em frente, estava no deserto roxo.
Este era o deserto que tinha de percorrer. O Deserto de areias roxas e céu roxo, o deserto onde o vento soprava, nem ameno nem fresco, e onde o Sol, escondido ou não existindo (sim, podia estar noutro planeta; podia estar noutro planeta de outra galáxia, e, quem sabe?; se a sua nave se tivesse avariado; se tivesse quatro braços. Se entendesse porque tinha de percorrer o deserto roxo para chegar a uma qualquer cidade – tendo uma missão. Ou estando perdido apenas porque queria estar perdido, e queria percorrer o deserto roxo. O Deserto Roxo. Não perderás a vida no Deserto Roxo, sabia sentir no sopro dos ventos, e da maneira como a areia roxa, leve, lhe saltava dos pés que, sim, começaram a caminhar em frente.
Ao longe via ruínas de pedra pretas, enterradas na areia grossa. O propósito das ruínas ultrapassava-o; assim se age quando estamos numa zona cujo próprio presente se desconhece. O Sol existente parecia ser uma mancha diluída, verde, esfacelada, atrás de um céu roxo. As nuvens roxas passavam e não passavam. Por vezes via paus verticais no chão, altos, com fios de cordas e pano a voarem, presos a esses mesmos paus. E passou pelas ruínas e nunca sentiu tarde, e era sempre de tarde e nunca viu o sol. Só um céu roxo, no Deserto Roxo. E foi aqui que se sentiu verdadeiramente um viajante.
Sim, passaram as eras. O seu traje adaptou-se pelos fracos, bífidos ventos, por vezes do Deserto, transportando a roxidão, e a sua boca ficou tapada. Os olhos estavam protegidos pelos espectómetros – que perderam por completo o conceito e o significado iniciais, servindo agora para proteger os olhos da areia. A sua capa voava. Horizontal ao chão e perpendicular aos seus ombros, indicava-lhe o caminho com os seus tentáculos a esticarem-se em frente, entre os braços e o tronco, e dos dois lados da cabeça, ou deixava-se como rasto perene do caminho que Vivelti ínfimos momentos antes percorrera. O tempo tornara-se, agora ao contrário do espaço ou dos seus pensamentos,, um borrão. Mas as tardes infindáveis e as noites curtas e desertas de vida hostil sucediam-se, e o céu com as estrelas brancas, atrás das nuvens finas verdes e laranjas contra o céu antracite eram as mesmas, e dispunham-se, sempre, nas novas constelações que Vivelti já observara que aquele céu tinha.
O Deserto Roxo.
Sim, por momentos quis chegar ao fim do Deserto Roxo e achar a cidade que – julgava – sabia existir. Teria que haver uma cidade na fronteira do Deserto Roxo, uma cidade apenas, não necessariamente mais civilização, naquela parte inteira do planeta – no continente inteiro, no planeta inteiro talvez. Só um enorme e gigantesco Deserto Roxo por todo o planeta que – como presente de um futuro que, no passado, estava cheio de vida, agora estendia-se, areias e céu; ruínas, correntes de vento. Falta de clima. Tudo isso, pelo mundo inteiro. E uma cidade no fim, talvez já nem da civilização original, talvez apenas uma outra, a que sobrou ou a que encontrou este local, e, enfim – à mesma prisioneiros? E Vivelti parava e olhava as estrelas em cima de grandes dunas roxas com todo o céu por cima dele; ou determinava-se a contemplar a imensidão que já tinha percorrido do Deserto Roxo e o que ainda existia, em frente, para percorrer do Deserto Roxo - sem nunca ter a ideia de estar perdido - em cima de uma coluna de pedra cilíndrica com gravuras e símbolos , enterrada na areia.
Esse mel que tinha sentido - por vezes parecia que ia pingar do céu, das nuvens transparentes e finas e das auroras boreais em tonalidades de laranja e verde, na noite, contra as estrelas minúsculas, dissolvendo-se todas essas singularidades bem precisas em mel, numa gota gorda e grossa de mel, e por vezes parecia que o Deserto Roxo ia acabar, com uma enorme gota de mel a cair do tecto; mas não chegava a acontecer essa inconstância, e a gota de mel nunca chegou a dissolver o céu, ou o tecto da Mina. E o céu continuava vasto e imenso, e longe. Demasiado Longe de Vivelti, o viajante. E assim continuou a percorrer o Deserto Roxo, sem uma certeza concreta do seu início, ou fim; aliás, tinha a certeza oposta, que não acabava, violentamente não acabava e permanecia enquanto ele continuasse a percorrê-lo; mas nunca se repetindo; vasto apenas de mais. numa das noites encontrou os destroços de uma nave caída, negra, queimada, parcialmente enterrada na areia roxa indiferente. O seu ocupante, se morrera, fora já desfeito e dissolvido pelas areias do deserto. Se não, também as areias o tragaram; e Vivelti sabia que nunca o iria ver. Continuou então, apenas a andar. (Coisas como) A fome e a sede eram passageiras como as aragens de vento que por vezes sopravam. Torres, pretas e sem entradas, avistavam-se por vezes ao longe; fortes abandonados, ruínas
No deserto vasto, vasto como os seus sonhos e as suas visões dos fins impossíveis para este mundo e o outro onde pertencia: o céu, à noite. A Areia Roxa.
Sim, subitamente: o céu dissolveu-se mesmo, o mel espesso espesso tão espesso como a fúria de todo o céu tragar pelo menos pela forma como o tragou deixando apenas atrás de si, opaco, um ponto negro calcinado já do tamanho real já não maior do que o que devia ser, Vivelti pensou Fui uma vítima de novo, Vivelti foi uma vítima do céu, desabou em cima dele numa gorda e insolente gota de mel que lhe cobriu, lentamente, enquanto caía, depressa demais para conseguir evitá-la, cansado demais para perceber como o mel era o mel, grosso, soporífero, amarelo de cola afogando-o, a cara, os óculos, o cabelo com cristais granulosos nas raízes da cabeça; a cinza que lhe assolou a garganta à medida que o mel se transformava de novo. Enquanto caía, a confusão entre os amarelos do mel e das luzes presas ao tecto da Mina: ainda, de novo completamente presente, e o tossir desengonçado, estupidificado no chão húmido de mais um corredor qualquer.
As luzes apagaram-se, e na frustração de tirar a frustração da cara, de se sentir ainda perdido, de não compreender, de bater apenas umas três, quatro vezes com os punhos contra a pedra polida, com a capa e a roupa a enrolarem-se à volta da sua carne como inimigas, depois de dias inteiros a caminhar por mais um deserto falso, com os músculos das pernas retesados, com a boca e o rosto arrepanhados da poalha invisível do Deserto, e os olhos cansados de tanta [tranquila] desolação e nada verem, sentindo um prenúncio de fúria que viria depois do cansaço, do cansaço, da frustração;. Adormeceu com o coração a palpitar.
Pretendemos cobrar os nosso falhanços mesmo que as entidades a quem o tentamos fazer, e não raro tomamos o temerário e fútil objectivo de o fazer à Vida em geral, mesmo que saibamos que não o conseguimos meramente por um sentimento de vingança a nós próprios ante à impossibilidade de, talvez, não nos termos feito valer quando seria suposto, não tendo nada que nos convença que, de facto, sim, falhámos (e cobramos) porque somos fracos mas não é culpa nossa sermos fracos. fracos seremos sempre, poderemos é ser menos fracos ou mais fracos do que os outros que também cobram a tudo e a todos a sua própria impossibilidade inerente de serem alguém, algo que seja precisamente o que pretendem a sua singularidade de vida ser, mas paciência, alas, assim, por uma razão ou por outra, se ficou pelo caminho. Que não se iludam: é sempre "por uma razão ou por outra". Sorte teve Vivelti na sua própria solidão; é talvez certo que não se sairia tão bem se por alguém estivesse acompanhado, e, ao tentar chegar aos lugares recônditos - e seguros - da sua psique, com o silêncio e reflexão forçados que a solidão lhe impôs, tal não lhe fosse permitido pelo companheiro. Ao acordar, no chão da Mina tão sólido e húmido e com luzes em lâmpadas da já familiar luz fraca e amarela, não gritou de frustração ou desespero perante a incompreensão absoluta sobre o que lhe estava a acontecer, a falta de um plano, ou o menor porquê que se lhe poderia estar a surgir e surge com extrema violência, em pluralidades. Doem-lhe as articulações quando se levanta, agarradas aos panos diferentes com que se veste em confusões de castanho, molhados, a arrastarem-se preguiçosamente pelo corpo com o suor salgado e adesivo de quem dorme. Ou dormiu; ou perdeu a consciência. A sacola pinga para o chão e deixa-se estar enquanto se senta, e, com movimentos dolorosos, se encosta finalmente a uma qualquer parede do corredor, para aí permanecer, tirando os espectómetros dos olhos.
Não há tempo para desenvolver técnicas de meditação surgidas da apatia e da solidão. Mas é possível, com a mente leve e já descrente, conseguir, ainda assim, compreender nesses começos de delírio as regras essenciais de todas as coisas, de determinadas coisas pelo menos, as que nos calharem passar pela testa, pela parte de trás do pescoço a afastarem-se já, mas compreendemo-las fugazmente e Vivelti compreendeu por momentos uma parte da Mina e decidiu querer, Quero um lugar para sair daqui, quero abrir uma porta na parede feita de céu, levantar-me e não cair, atravessar o céu numa porta e como quem desenha o raio de um círculo numa imagem dupla a parede desenhou-se na anulação de si mesma, a porta do céu a mando de Vivelti abrira-se. Enquanto se levantava para a atravessar sem sequer a questionar podia acertar da sua autenticidade apercebeu-se dela mesmo com a visão de algumas nuvens brancas ao longe, em formações de castelo e flutuando para leste, com o vento, É só um céu artificial, e Vivelti viu uma mulher enterrada num monte fértil de terra porosa e revolvida a ser comida por larvas e a gritar algo perfeitamente muda e viu que essa mulher era mãe de alguém, mas não era real porque era uma visão sua e não da Mina e nesse céu viu ao longe um minúsculo ponto atrás de nuvens com torres e era uma casa e dessa casa fugiu um outro minúsculo ponto negro em direcção a um solo que não se via e a questão era se estava a voar ou apenas a flutuar ou se nunca (e ainda) teria saído daquela parede naquele corredor mas ao mesmo tempo dizia, não isto é real porque eu assim quis vir para este lugar, eu quis sair dali e sei o que estou a fazer, e a questão é se saberia de facto, se ainda sentiria o sítio onde estava como mais uma porosidade facilmente quebrada.
Sentiria?
Agora o céu mudara. Na tentativa estúpida e fútil de tentar perceber como voar ou deslizar pelo ar numa viagem descontrolada, deixou-se de novo vencer ou pela dúvida, ou pelo cansaço ou por ambos, pois qual é o que chama qual quando os dois estão tão intimamente interligados?, o céu rompeu-se. Mais um sítio porra, foda-se! Quis gritar o seu cabelo desalinhado e o seu semblante de fúria. A sua transcendência durara mil anos. mais talvez, nunca datas certas. Agora, o jugo da realidade era de novo tão grande que, perante o quadro que lhe aparecia à sua frente - vários corcundas e trissémicos a tocarem trompete e saxofone, com um enorme rasgão no meio da tela, e as palavras a roxo a brilharem na parede com uma inscrição infantil a dizerem "Vivelti, és o único que nos podes ajudar a recuperar o pedaço de tela perdido, e se o fizeres dir-te-emos uma forma de saíres desta Mina", a reacção que lhe saiu de rajada ilustrada com um dedo do meio esticado na direcção do quadro foi um "Fodam-se!", e seguiu em frente ignorando o ignóbil pedaço de arte. Talvez um dedo em riste.
Se bem que as cornetas nas quais estavam a soprar eram interessantes, e Vivelti nunca os tinha visto antes, mas não deu mais tempo nisso, o céu dissolvera-se como sempre fizera assim e só lhe restava adiantar o passo, uma vez que estava de novo perdido dentro da Mina num sítio qualquer, totalmente não-linear.
Queria dizer: ao ajoelhar-se para inspirar um bocado de ar fresco com a boca toda aberta, sentira um sabor de frescura com o sabor a noite e a cemitério, com o sabor à vilazinha onde entrara há, tanto tempo atrás com o seu amigo e o Professor, um sabor fresco e com um odor ligeiramente pictórico, uma névoa, claro, mas seria possível também ter uma cor - não. infelizmente não. Mas respirou, respirou a tentar lembrar-se para onde iria – para cima ou para baixo?, uma vez que o corredor não se bifurcava e de cima tinha vindo ele. desceria... desceria cada vez mais para o coração da Mina, ele e só ele avançando por aquele pequeno corredor estreito com as esparsas lâmpadas amarelas, sempre as mesmas lâmpadas persas por fios ao tecto. E. Enquanto andava o ar ficava progressivamente mais frio como uma raiz quadrada; as paredes estreitavam-se como uma função (de…–). -7. A escuridão parecia invadir a escuridão tremeluzente das paredes, o opaco, contra o fosforescente. O fosforescente contra o opaco. Vivelti continuava andando, mão na correia de pano da sacola, já sem sentir a aragem diferente de um novo salão com diabólicos problemas matemáticos que testavam a sua lucidez e capacidade para subverter a própria realidade, mantendo assim a sua vida; ao longe, uma falsidade de um cheiro de flores de limão... Entendia-o nos ossos, era-lhe dito com cada gota de água que caía nas poças da Mina. Tinha-se tornado tudo mortalmente sério, alimentado por uma espécie de medo tranquilo que, mesmo perante a dificuldade da Tarefa que lhe era apresentada, não o bloqueava ou fazia-o lembrar-se de que ainda era apenas um miúdo; Não pedindo mais do que o que lhe aparecia à frente dos olhos que oravam preces incapazes de deslindar os mistérios noutras frequências, como a luz ultravioleta – encarava toda a situação difícil de acreditar e de não surpreender com a resignação de que não havia outra alternativa, e se existia à frente dos seus olhos era porque ainda seria fisicamente possível, presa ainda a um nível de realidade lógico (que, porém, Vivelti ainda não compreendia). Como se fosse mais uma tarefa que um homem corajosamente cumpriria. Mesmo uma destas dimensões. As teclas dos órgãos, gotejando, a água fazendo cumprir os seus desígnios de sonoridade inquietante. Respirava-se a humidade colada ás paredes como um cansaço podre, mas fresco. Sem sexo designado previamente. O arquétipo de sonho continuava.
As paredes estreitaram-se até não conseguirem andar duas pessoas lado a lado, e o tecto baixou-se até pouco mais à altura de um adulto. Cheirava menos a humidade. A Mina mudara novamente. A sua cor laranja e húmida deu lugar, naturalmente, mas quase subitamente (claro, subconsciencializou Vivelti) a uma luz mais escura, desaparecendo a anterior,, sendo substituída em concordância com a suposta noite; um azul-escuro e uma claridade que pareciam vir de uma janela fina, mesmo na esquina da bifurcação da qual Vivelti se aproximava. Vivelti chegou a uma bifurcação. Agora o silêncio era muito maior – quase absoluto, e real também. Suspendera-se a arritmia dos pingos límpidos de respostas. Para a esquerda tinha mais um corredor que descia suavemente, onde se encontrava, de novo, a característica cor laranja e humidade da Mina, impregnada nas paredes, na normalidade subjacente ao labirinto desesperante. Para a direita, uma escada em caracol de degraus íngremes e bastante estreita, com a nova luminosidade, humidade e silêncio que tinha acabado por envolver aquela particular zona – parecia tão interminável, tão sólida, tão, ou viva, quanto as outras. Vivelti virou para a direita. Subindo as escadas (em caracol). Apercebeu-se que a Mina estava, agora, a assemelhar-se mais a uma espécie de torre medieval, com algumas ameias com uma luz nocturna puramente artificial, uma vez que lá fora não existia a superfície. Vivelti tentou perscrutar o que era, espreitando pelas ameias; não conseguiu ver nada a não ser a artificialidade de uma noite, o que era desconcertante. Com aragem fresca e tudo. Essa noite representada “lá fora” não existia, e continuava a não existir enquanto Vivelti subia os degraus da Torre e ia espreitando pelas frestas no lado direito da parede. Não havia saídas para a esquerda ou para a direita. Subiu até ao fim da Torre. Não havia a praia nem a falésia entre o momento do início de uma tempestade e a iminência de uma noite. O corvo silenciara-se para sempre. Voara para a própria mentira que também fora. Então os seus pés continuaram a dizer subamos.
O fim da Torre dava para uma pequena sala em chão de longas tábuas de madeira, verticais. Havia algumas janelas, frestas, entradas nas águas-furtadas, que permitiam deixar entrar mais claridade falsa da noite, com o cheiro da noite, e o fresco da noite falsos. O fundo da masmorra estava encoberto por escuridão,; mas presumia-se o fim. No fim da sala, ao fundo,
viam-se os contornos de um homem escondido na sombra. Agrilhoado a uma escuridão pelas mãos. A cabeça, pendendo. A luz da noite, revezando-se nas penumbras. Era um homem. Quieto como um homem vivo. Imóvel ou pagado como um homem vivo.
Seria a realidade mais cruel do que poderia supor? Seria obrigado a falar. Não havia nenhuma placa de madeira presa à corrente do seu corpo, com o seu nome, sem pressa. A escuridão ondulava e passeava-se, como um sopro lânguido, pela cara do homem loiro e gordo. E cicatrizes antigas viam-se ainda na sua testa e olhos, impedindo-os de os fechar na sua totalidade. O homem preso e agrilhoado nunca pôde mais fechar os olhos desde que as cicatrizes coagularam entre a carne e a secura das formas. Vivelti sentia um cheira a cinzas húmidas no ar.
Todo aquele lugar lhe pareceu uma memória física. A Torre abandonada nos confins de uma noite que não existia, no enorme vazio de uma Mina infinita. No último andar. E agora era o homem que olhava para ele, com os olhos – quase fechados? Suporia tratar-se Vivelti de uma alucinação – enquanto sentia o chão de madeira nas botas, olhava para a janela que mostrava uma noite estrelada, lá fora, e fria, quase amena, numa brisa fraca / fazia ondular as cortinas rasgadas das janelas abertas. Escancaradas contra a parede.
E o homem estava acordado ou acordou, reparou. Rapidamente, chegou-se a ele e ajoelhou-se e amparou-lhe a cabeça, como forma imediata de prestar-lhe cuidados, ao mesmo tempo que perguntava, – Está bem, quem lhe fez isto?, tentou atabalhoadamente agarrar as correntes frias, sentindo-lhes a força e procurando um aloquete. O homem deixou pender a cabeça e quase sorria, talvez,, mas na penumbra, Vivelti não o conseguia confirmar. – Como se chama? O que é que lhe aconteceu?
- Eles disseram... – num fio murmurado, com a cabeça apoiada num dos seus ombros e os olhos fechados até ao limite – eles disseram que eu pagaria pelos meus actos...
O estranho aqui sou eu, pensou. Olhou com a face obliquamente para o homem. "Como se chama?"
- Liberace
;
- _
Estava nu tirando os pedaços esfarrapados do roupão rosa que lhe estavam agarrados à pele sem pêlos.
- Ouça-me. Como é que euA chave está com o... hipopótamo – disse Liberace.
- O hipopótamo? Quem é o hipopótamo?
- O hipopótamo tem-na... tem a minha chave. Das... correntes – suspirou. Vivelti olhou em volta., e reparou numa porta de madeira atrás do corpo glabro de Liberace coberto com fiapos rosa de tecido e pelo.
- Hum... sem ela não o consigo libertar?
- É impossível
O homem nú que Vivelti segurava nos braços hesitava entre a consciência e a inconsciência, e, A noite artificial permanecia lá fora. Apeteceu-lhe perguntar ao homem moribundo se ela ali permaneceria para sempre; se nunca deixaria de ser noite, naquele lugar, ou se seria sempre noite enquanto não o libertasse - ou não voltasse para trás, ou entrasse pela portinhola de madeira decrépita, assomando, de novo, num lugar completamente diferente. Havia qualquer coisa de muito estranho - e autêntico, naquela noite.
- Acorde. Ajude-me; por favor. Estou perdido. Preciso de encontrar os meus amigos.
acre ávido.; de improvisação.
- Onde estamos?
- No fim da rua do Mal
- Não! - Vivelti agarrou-o pelos ombros. - Não. Ouça-me. Onde estamos? Que sítio é este? Responda-me. Sabe onde estão os meus amigos? Não preciso desses clichés de merda. Eu estou dentro de uma Mina Eu sei que é real, eu sei que tudo isto é real, eu estou a agarrá-lo! Portanto
- Calma
Liberace deixou-se levar por um cansaço de absolutamente nada. [Mas] a sua cabeça descaiu; o corpo poderia ter sido arremetido por um tremor
- Liberace
- Calma –
Parecia que a cada momento o velho de cabelos loiros poderia dar o seu último suspiro. Vivelti agarrava-o como podia. A custo ia falando. Não me consegues libertar... Não tens a chave. Esta não era o fim da rua do mal... Perdoa-me... se calhar só eu... a sinto assim.
De suspiro em suspiro Liberace ia desfalecendo. E a noite artificial ou não a cada momento fazia sentir mais a sua presença.
- Houve um homem...
Liberace deixou pender de novo a cabeça em direcção ao chão. os seus pêlos azuis contrastavam como seu perfil contra a janela aberta. "Houve um homem que encontrei na Mina. Chamava-se Tupac. Ele disse-me que só conseguiria sair da Mina se encontrasse o Tigre Azul, à entrada de um pântano. À entrada do pântano..."
- Ha...! haa, - Liberace sorria desfigurando a sua face através das cicatrizes juntas pela carne coagulada - ai sim, O Tigre Azul, no pântano,
- Ele disse-me que, tinha sido o Hipopótamo cor-de-rosa a pô-lo aqui, para, para encontrar o Tigre Azul...
- E quem te pode afirmar isso, com certeza? - Liberace suspirava, tentando encontrar, em vão, uma posição confortável, torcendo-se nas grilhetas de metal – Quem não te disse que o, Hipopótamo não estava a mentir-lhe, ou que o pôs aqui só para o poder matar, ou,
- Conhece-o?
- Sim, conheço-o, – Sorriu
- Sente-se bem?
- Não, rapaz, – respondeu – não me sinto nada bem, estou, a pagar pelos meus crimes, como me dissseram
- O...
- O hipopótam,. É um demónio, rapaz, ouve-me - Fitou Vivelti de frente, que se afastou para contemplar a noite artificial, com as mãos no parapeito da janela a ser sentido pelo vento - não confies, nele
- No hipopótamo? - Vivelti olhava para a janela.
- Em nninguém, Nas histórias ou em mim, Ouu em
- Ele disse-me que estava a tentar encontrar o pântano há anos - disse, absorto a olhar para as estrelas brancas - para - sair da Mina. Eu estou aqui há... - (há quanto tempo?), como é que eu o vou achar -
- O quê – Liberace olhou-o de frente, fixamente para as costas.
- Hã? - Vivelti virou-se.
- O quê – repetiu -, O que é que vais achar?, O Tigre Azul, ou o pântano?, Ou o hipopótamo
- O que é que isso interessa.! As coisas escritas nas paredes – são dele, não? Do hipopótamo?
Um brilho passou pelos olhos de Liberace.
- De qualquer modo... Como é que eu saio daqui. - Ajoelhou-se junto ao prisioneiro que para ele olhava, a custo, acorrentado – Sabe? Sabe como consigo sair daqui desta Mina e encontrar os meus amigos?
- Eestamos, Nna Mina – suspirou Liberace. A sua cabeça pendeu em direcção ao chão – Não confies, nele, em ninguém – Não acredites que, o pântano é a casa do Tigre Azul pode, não ser
- Está assim tão moribundo. - Vivelti virou-se de novo para a janela.
- Ouve-me – pediu Liberace. Vivelti olhou para ele – Não confies no hipopótamo, Nem no Tigre Azul, o, que quer que ele seja. Confia em mim, é verdadee
(Concentra-te.), pensou.
- É verdade o quê?
- Que podes sair... pelo pântano – respondeu Liberace, em esforço crescente - eu sei que é, Ttu podes sair do, Pântano pela Mina. Ou da
- Como? E como é que eu chego até lá?
- Pela porta atrás ddde mim... podes sair da Mina pela porta atrásde mim, Ouve-me. - Vivelti aproximou-se dele – Ouve-me. Tens, que chegar ao pântano, é antes de... um pomar que não devia existir,
- Porquê?
- Porque as raízes das macieiras, Já estão no pântano. Nas, águas pantanosas
- Concentre-se. Como é que eu chego ao pomar? Como é que eu sei que cheguei ao fim da Mina?
- Tens que encontrar alguém. Alguuém que, - Tu não és daqui, Sai por, esta porta. Os teus amigos já estão a ir mas, num outro sentido no, sentido contrário?,
- Amigos, quem?
- Um rapaz como tu e um mágico e um,
- Miguelti? - Vivelti levantou-se e olhou absorto para Liberace - Ele chama-se Miguelti.
- Miguelti
"Do Diário de Vivelti
Não tenho certezas de quase nada e não interessa verificar as coisas de que certeza tenho, porque nem disso tenho a certeza toda mas ainda posso raciocinar da seguinte maneira: não interessa, ainda há indiferença em mim suficiente que me permita acreditar que posso passar por tudo isto como um cão por vinha vindimada. Do que já relatei.
Tenho de ter a mais absoluta calma, se fosse neste momento o velho de nome Liberace que encontrei disse-me que encontrou há alguns séculos atrás entre os seus delírios o Miguelti e estavam com ele mais companheiros também empenhados em escapar da Mina pertenciam à trupe do Circo do Paraíso apesar de Liberace me ter dito que usavam outro nome para enganar viajantes, mas se eles estão presos na Mina, quem são, se também queriam sair, pergunto-me, que não estava a tentar encontrar o pântano disse mas o fim da Mina que Liberace diz que não existe, mas existe, tudo tem um fim, espero encontrá-lo no caminho à minha frente procurando depois ir ajudar o Professor.
Mas tenho de sair daqui e já sei como. Acabei de atravessar a porta e rastejei por um túnel escuro (que parecia ter a consistência de madeira), saí por outro buraco depois de alguns minutos a rastejar em direcção à luz e agora estou aqui, a Mina está a pulsar à minha frente. A parede suada parece uma enorme membrana muscular em padrões repetidos por cada segmento oblíquo. Liberace desenhou-me um mapa e contou-me os segredos que anotei aqui para nunca me perder. Vou até ao pântano ocre, antes do pomar, e o fim ou o início deste lugar lá encontrarei.
"
, E o corredor escuro parecia abrir-se à sua frente, como a desfragmentação de um mosaico. Deixando a Torre na noite falsa presa para trás. Tentando chegar ao pomar à entrada do pântano, em tons de amarelo ácido. Como Liberace lhe tinha dito. Passando por salas e corredores. Depois de túneis e galerias. Deixando para trás uma divisão com a estátua decepada de uma guerreira com seis braços, em ouro. A cabeça não se encontrava na sala. Abrindo uma porta através... do subtil cálculo umbral de combinações de cores como a equação que,... – e a porta abrira-se. Passando por paredes arranhadas. Outras nem tanto. Frases escritas em alfabetos – que Vivelti não compreendia, naturalmente. Acompanhando-o uma estranha, e neutra melodia de raspares, chios de correntes de ar, sopros abafados. “Segue.. a aranha até à sua toca” balbuciou o velho em choque. As palavras de Vivelti eram tão estranhas quanto plausíveis. O que encontraria quando chegasse ao pântano – depois do pomar? A origem do vírus ou bactéria Real que parecia ter contaminado a Mina? Desconfiava que não poderia encontrar o Tigre Azul para este lhe indicar a saída – ou dizer-lhe que nunca existira uma, e o caminho para trás, esse, tinha mesmo ficado irredutivelmente tapado por um deslizamento de pedras; nunca. Parecia tudo tão longínquo, agora. Talvez, pensou, enquanto chegou a um beco sem saída, num corredor largo, e à sua frente encontrava-se um humanóide crucificado, ao contrário; de cabeça para baixo. As suas asas de pele e penas longas estavam empapadas em sangue morto, por dentro, e esfacelavam-se quase no chão. Sim,, talvez uma infecção. A cruz era feita de dois espigões de metal preto. Estava também ao contrário como o humanóide. Nos pregos nas mãos e nos pés o sangue era seco. “Esfinge 4”, escrito num papel por cima dos pés pregados e inchados de sangue preto. O pântano assustava-o. Como saída possível da Mina – porque é que, mesmo subindo, subindo pelos corredores, sentia que descia cada vez mais? Atrás da cruz a parede desfaleceu até à transparência, e Vivelti continuou. Pensou no seu amigo e no Professor, mais uma vez. O que seria deles? O automóvel vindo do futuro, borbulhando ares de outro tempo da sua pintura comida e estalada, frágil. Passou por uma enorme galeria, onde o ar era fresco, com algumas caravanas abandonadas e tendas montadas, mas com o pano a ceder já em alguns lados, algumas estacas morrendo hirtas e oblíquas espetadas no chão liso. Das caravanas Vivelti pareceu ter visto olhos que espreitavam assustados, ou seriam apenas relampejos de luz nas cores velhas e lascadas das madeiras das caravanas, junto às janelas de vidro tapadas por panos, e não fez caso deles. Com dezassete saídas à sua frente, dezassete túneis, cada um levando-o a um outro lugar onde continuaria tão perdido como antes. Escolhe o túnel magenta. E um túnel ocre aparecia à sua frente, num dos cantos da galeria, e Vivelti atravessou toda a galeria passando pelas tendas e caravanas de circo abandonadas, e entrou pelo túnel ocre.
O seu trono era feito de carne. Os membros, pedaços de dedos de mãos, e de pés. Alguns olhos esvaziados e ossos saídos, agarrados ainda a bocados de carne viva. Liberace sentava-se, com um braço recostado de cada lado, e uma coroa de papel dourado-velho recortada em picos triangulares em cima da sua cabeça, com o seu vison cor-de-rosa a servir de manto. Enlameado e castanho nas pontas. Com manchas de sangue em borbotões em riscos, ou círculos concentrados, pelo manto. Mas Liberace não estava sentado no trono. O trono estava vazio. Voltado para a parede, virara-se para Vivelti, quando Vivelti entrara nesta sala da Mina. Uma porta atrás e uma porta à frente, ao fundo, ambas com maçaneta. E o trono de carne que sentava Liberace, o trono que, ao vê-lo, Vivelti soube ter sido palco de grandes deboches e festas descontroladas durante dezenas de anos naquela Mina, a esticarem-se até aos fins de uma melodia certa, não demasiado fina, com bailarinas com reduzidas roupas de metal e bolos em torre de todas as cores, animais sarcásticos e alguns até sádicos, vestidos e excitados e falantes, com Liberace no meio a atirar farrapos de papel colorido para o ar com ambas as mãos gordas e muitas moedas que, apesar de não terem qualquer tipo de valor real dentro dos confins daquele espaço infinito, fechado e absoluto, eram ainda assim agarradas frenética e viciadamente no ar por todos e todas, encontrava-se vazio. Vazio, como um eco desses tempos em que Liberace tinha sido um rei, um rei de alguma parte da Mina em particular, um lugar que tinha perdido, há meros dias, ou algumas décadas. E o trono virou-se para Vivelti quando este entrou na sala e fechou a porta (uma única lâmpada acesa de luz amarela no tecto, por cima do trono), e ficou de novo imóvel com a solenidade de todas essas histórias, como se observasse. Ficou virado para si. E essas histórias, no seu reflexo do eco longínquo, longínquo... desses tempos, desvaneceram-se no ar. Como um perfume suave demais. Demasiado fraco.
Então Vivelti passou pelo trono sem olhar para ele, virou-lhe as costas. E, sem ver se ele se tinha de novo virado na sua direcção, foi até ao fim da sala, e saiu, abrindo e fechando a porta atrás de si.
Primeiro o resto, só depois a entrada no pântano. As árvores baixas e retorcidas de madeira cinzenta e reticulada. Um abismo agora elevava-se de profundezas cegas para o rapaz, e distava entre os dois lados uns bons cinco ou seis metros. O ar que se elevava era grave e doce, e apareceu do abismo elevando-se no ar um arcanjo vendado com uma fita roxa a dizer Nãopassarásnãopassarásajudameajudamenãopassarásnãopassarás, os seus reflexos foram rápidos; – Saltou e agarrou-se ao seu corpo e às suas asas, e ao que quer que fosse que conseguisse agarrar ao manto ou aos cabelos, Pára imbecil que estás a fazer, larga-me larga-me, deixa-me
em paz mas Vivelti já trepara com uma rapidez impressionante para os ombros do arcanjo, que para não deixar cair a espada para o abismo só podia usar uma das mãos para tentar afastar o rapaz, e as suas asas bateram descontroladamente, virou-se para baixo, Vivelti saltou para o outro lado do abismo onde não caiu de pé –
E o arcanjo? Talvez ainda horrorizado com a possibilidade de ter sido tocado, elevou-se para o abismo que cortava a Mina como uma faca invisível vertical com as mãos na face cega, as asas fulgurantemente brancas, a dizer qualquer coisa mas não propriamente a gritar?, e lá foi ele, para a escuridão superior até se elevar tão completamente, que desapareceu,, caído de barriga para baixo quase imóvel estava Vivelti, que sentia ainda o mesmo ar adocicado a entrar e a sair-lhe dos pulmões, enquanto escutava o pingar da água nas poças de chão polido da Mina, e noutra quase exacta, mas não falsa linha temporal, Vivelti teria agarrado nas asas do arcanjo (mas) não teria saltado, e os dois cairiam pesadamente exactamente no mesmo sítio onde Vivelti se encontrava, e o arcanjo depois de alguns momentos de intenso nervosismo e paranóia com Vivelti a observá-lo, do chão, sem qualquer expressão na sua face, finalmente se acalmaria e os dois trocariam histórias um com o outro, com o arcanjo a contar-lhe de onde vinha, que era o Abismo, e aquela zona uma fronteira entre a Mina, o plano, e o Abismo, situada num plano inferior, já fora do controlo do Tigre Azul (o que era um Tigre Azul) e/ou de qualquer hipopótamo, locais distintos verdadeiramente, como só podem ser as coisas que têm inícios e fins destacados, (e ainda assim, como se cruzavam os dois naquele ponto, era verdadeiramente misterioso), e dir-lhe-ia que no Abismo não havia qualquer luz natural, apesar de archotes e fogueiras poderem ser acesos, e que todos eram cegos incluindo os seus principais habitantes, os Gaddocks, e falar-lhe-ia das casas com telhados e dos Cavaleiros, mestres em atravessar pontes entre os abismos no Abismo, e ensinar-lhe-ia a pescar, com as mãos, os peixes-manteiga, que, com as suas bocas e mais de dezasseis pares de dentes arrancavam os dedo a quem não fosse suficientemente rápido a agarrá-los, daí os Gaddocks não terem nunca os dedos completos das mãos – embora estes se regenerassem com o tempo. E o bolor era inteligente e falava, uma enorme entidade que se encontrava presente desde os quentes rios de lava até ás florestas de bolbos e líquenes esponjosos e às profundezas mais escuras do Abismo, onde os Gaddocks usavam portas de pedra escondidas na parede para fugirem aos Mutras, e o arcanjo e Vivelti decidiriam, depois de uma longa conversa, sentados no chão da Mina, continuassem a travessia de Vivelti juntos, renegando o arcanjo, porque podia mas nunca tendo tido a coragem para pensar nisso, o seu lugar de guardião de fronteira entre um sítio e o outro (embora nunca ninguém a tivesse atravessado desde que fora criado para esse propósito), mas mal continuassem, ainda não se tendo o arcanjo habituado a andar pelo chão, mal o resto da Mina se revelasse, a parte seguinte, o arcanjo tremeria, correria de medo, e desapareceria da vista de Vivelti de novo, de vez, sem mais voltar – porquê? A luz era demasiada. O Abismo não existia mais. A solidificação da sua própria psique nesta realidade não era possível. E foi assim que Vivelti nunca chegou a saber do ponto convergente entre a Mina e outro lugar diferente e distinto,, o Abismo nem de como caçar os peixes-manteiga dos lagos e rios do Abismo sem perder os dedos. E nunca chegou a saber que, na Mina, existia algo mais para além da Mina, e pelo menos uma outra saída. Levantou-se, disposto a tirar todo o ar doce do corpo, e continuou em frente.
Um bouquet de flores na Mina. Primeiro despedaçadas no chão às duas e três, amarelas. E depois, aqui, ali, nas paredes, das paredes afloravam as flores. Eram amarelas e grandes, de quatro pétalas assimétricas as primeiras. O que estariam flores a fazer na Mina? No tecto dos corredores, também, que voltavam a entrar em modo labiríntico. As flores espraiavam-se por um dos corredores que ia a direito e não pelos outros, que desciam, subiam, viravam repentinamente para a direita ou para a esquerda. Vivelti extraiu uma das flores amarelas da parede, que se soltou com um clic, e pô-la na bolsa de pequena da sacola, abrindo-a e fechando-a, e só depois tirou uma outra e cheirou-a, e cheirava vagamente a whisky e a... ossos frescos. Vivelti deixou-a ficar na sua mão que caiu ao longo do corpo, mas e se a flor tivesse efeitos alucinogénicos;, e se se perdesse na Mina por causa daquela flor para nunca mais voltar, perdendo o controlo das suas mãos e pernas e do seu corpo, caindo – como agora? – no chão da Mina rebolando e babando-se ou tomando o caminho errado – morrendo desidratado? – ajudem-me amigos que não tenho ajudem-me nesta forma e fase ridícula da minha luta por um propósito ajudem-me paredes húmidas de escárnio ajudem-me vozes confrangedoras na minha cabeça que se parecem com progenitores agastados ajudem-me, sons, sons do futuro, sons em ruído constante, ensurdecedor, as flores, as flores com cheiro a ossos frescos e whisky,
À sua frente o corredor permanecia cheio de flores. Vivelti decidiu que arrancar e levar consigo uma seria uma boa adição ao jardim de sua casa – certo que a flor até lá não murcharia. Com nenhum momento a mais. Certo de que teriam sido apenas fugazes pensamentos – ou quanto tempo terá passado? Medo da própria certeza era, um pouco, o que sentia e sentiu, mais do que uma vez, a face com as mãos – sujas, sim mais um dado?, não?, – à procura de vestígios secos de saliva, ou de baba. A incerteza acompanhou-o, pisando flores partidas no chão, arrancadas das paredes, ou caídas. Repleto. Repleto. Continuou em passos trôpegos muito provavelmente, pensou, sugestionados. Ou provavelmente, só.
As paredes da Mina brilhavam agora. Um sinal de que se estaria a aproximar?, ou sinal nenhum. Os corredores repetiam-se – e os salões – com uma cadência relativamente constante, serpenteando, subindo e abrindo-se, mas este novo brilho, amarelo como pedras cravadas nas paredes, fazia-se sentir como constante e imponente, um brilho que não era comum ao que, dantes, tinha atravessado. Mas depressa desapareceu de novo. E as paredes de novo ficaram dele despidas.
Encontrou um piano despedaçado – cordas dobradas, e a madeira partida, com a tinta lascada – no chão num corredor descaracterizado. Não havia sinais de quem o autor teria sido, e não perdeu tempo a observar o piano escavacado, uma vez que estava farto de procurar significado dentro da Mina em coisas que não tinham qualquer significado. Apenas anotou como um facto no seu caderno. “Encontrei um piano escavacado. Segui em frente.”
Também encontrou pelas paredes, como se alguém novo e diferente dele, outra pessoa tivesse estado ali e tivesse escolhido a sua peculiar forma de comunicar pelas paredes ou de encontrar a sua forma de sair da esfera do labirinto de minas escritos, "Venham ver em Montreux o duo" – riscado. "Um som fresco e novo não seria novo", "com melodias atónicas e atónitas eu percebi e eu depois morri". Os escritos estavam em tinta roxa e a dada altura eram só borrões atirados à rocha; "Em Lolapaloosa é que se está bem, não vemos o homem a arder o homem ardido tocha humana". Vivelti não conseguia extrair nenhum sentido das frases que lhe soavam a falsas. E não interessava. Ignorou-as. "Snare duplo??". Era inglês. Borrões sem padrão de irreflectismo.
Tinta.
A Mina abrira-se numa larga gruta, sem as familiares lâmpadas acesas. Mas sim uma luz azul arroxeada que vinha de uma fonte invisível do tecto e pouco iluminava Vivelti ou o seu percurso,, forte, mas escura. Vivelti parou para comer. Era um sítio tão bom como qualquer outro, agora que já se estava a aproximar do fim, de um fim que ainda não conseguia perceber quando começaria. As suas pernas cansadas abrandaram até parar. Sentou-se, no meio da gruta, olhando para o tecto; tentado perceber de onde vinha essa nova estranha luminosidade que mal se contrastava nas trevas, e tirando uma sanduíche embrulhada em papel da sacola. Em gestos precisos e lentos. Devagar, já sem pressas, tirou a sanduíche do embrulho de papel e trincava-a lentamente, e mastigava-a. O silêncio instalou-se nele e em toda a gruta. No escuro, sozinho, comeu a sanduíche em silêncio.
Acabou de comer a sanduíche, limpou a boca com a mão, e levantou-se, descruzando as pernas.
Era incrível como estava sozinho,. E perdido. Estava tão perdido agora como quando se encontrara do outro lado do túnel que desabara. Não o soubera antes. Olhou a gruta em volta, envolta num silêncio permanente. Era completamente indiferente estar ali, ou não estar. A mesma luz escura e baça, azul, caía do tecto e desvanecia-se perto do chão. Aquela gruta era só uma gruta vazia, perdida na Mina, e ele estava longe ainda, ainda muito longe, do pântano. Da entrada do pântano. E a luz azul-escura, forte, inundava-o de azul, e escondia o caminho à sua frente. Mas a cada passo que dava revelavam-se contornos de aço e de outras luzes dispersas – como a memória de um céu saturado em cores leves e baças. Era uma pirâmide no centro de uma cidade de arranha-céus. E, quanta saudades Vivelti sentia a observar a cidade do futuro ao longe – seria uma miragem, dos tempos que hão-de vir. A cabeça de uma mulher estava fixa, olhando um horizonte que ele não via. Metálica, esfíngica. O panorama do céu futuro continuava. E porque caíam lágrimas de Vivelti? Porque é que a sua angústia era tão forte que podia sentir o desvanecer de toda essa cidade que ainda não existia. Dessas memórias, plantadas por alguém – alguém – de tempos em que tudo se desvanecerá, e apagará, num local onde estátuas de mulheres em aço olharão o horizonte, os céus amarelos e roxos, as nuvens rebentando no céu, finas ou borbotões, e nada dirão, porque tudo será tão misterioso como sempre tudo fora. E a pirâmide ligará as luzes dos seus cubículos interiores, numa solidão de aço preto, contrastando-se contra o céu, lembrando-se os tempos imemoriais da tecnologia como uma entidade, e já não como uma mera factualidade. E a paisagem rodava sobre si; devagar. E num espeto de madeira, no meio de uma praça circular e vasta, vazia e fulgurante de branco e prata, estaria a estátua ritual de um ser empalado num espeto de madeira. E as caras das mulheres esfíngicas continuarão a olhar para esse horizonte; ignorando a cidade. E outras torres se destacarão contra o céu. Sempre inacessível;, torres vazias. Torres vazias também negras, onde o vento soprará entre e por elas, vazias por dentro e por fora. Abandonadas. Como se essa cidade fosse apenas uma construção única, e não um local; um local vivo, ou apenas um sítio. Talvez um templo. Somente isso mesmo, talvez. Uma memória. Um memória no presente de tempos passados, onde os seus únicos habitantes seriam as estátuas de mulheres de feições esfíngicas – no topo dos prédios, nas esquinas das ruas largas e desertas, nas varandas para o céu, observando. Apenas lá deixadas, a observarem essas mesmas memórias de si próprias. Mas apenas estátuas. Ou à espera de quem voltará.
Ou deixadas, ou criadas, para Vivelti, centenas de anos no passado, pudesse vê-las, e emocionar-se porque, de certa maneira, ele compreendia – e perceber que, ainda assim, tudo aquilo o ultrapassava.
Tudo aquilo não era só um futuro, como era muito mais.
A Mina.
Que lugar incompreensível.
A imagem projectada da cidade contra a luz azul-escura contrastava com ela, apesar de transparente. E do outro lado estaria a passagem – para outra gruta, para mais uma ponte subterrânea, para outro ou outros corredores labirínticos. E Vivelti teria de a atravessar, sem saber de onde ela vinha – e sem saber para onde ele iria. Mas cada passo era tão penoso, agora. Estava tão cansado. A cada passo que dava limpava as lágrimas à manga da jaqueta, e procurava aclarar a garganta que tinha ficado apertada de uma emoção que não soubera de onde teria vindo. A cada passo aproximava-se da cidade. E a cada passo sentia todo o cansaço que ganhou a atravessar todos os lugares da Mina por centenas de anos. Todos os desertos, todas as tempestades no mar. Todos os delírios e todas as perdas. E tudo o resto ficara para trás excepto o seu cansaço. E as imagens que os seus olhos viram.
E depois de ter atravessado a cidade banhou-se nas imagens e luzes do seu céu. E a claridade atrapalhou-o, portanto. E atravessou a imagem dessa cidade, mostrada pela Mina como uma projecção invisível.;
Mas agora o cansaço era forte demais. Tinha andado já tanto. A luz azul-escura voltou a envolvê-lo, e essa escuridão latente toldava-lhe a visão do caminho a percorrer – em frente. As paredes húmidas e limadas da Mina pareciam-lhe mais absolutas do que nunca. Quando se ajoelhou, as suas pernas cederem. Quando se apoiou com os braços e os cotovelos no chão e a capa, mais pesada do que nunca, o impeliu a deitar-se. Quando a tontura do cansaço e de um desespero já resignado o fizeram fechar os olhos para ganhar algumas forças. Quando perdeu os sentidos ao ver, finalmente ao atravessar aquela gruta, folhas ao longe de árvores a agitarem-se um pouco contra um vento que transportava uma luz clara e forte, algo brilhante. - Tudo mudara novamente.
Não havia sal quando as suas pálpebras se despegaram uma da outra, ardendo. Ardendo. Os seus olhos viram de novo a claridade, a luz. E estava quase morto como das outras vezes. ,Não estremeceu o corpo Mas desta vez sentia a morte perto, a rondá-lo de facto. Perigosamente perto, e a sua garganta seca, os seus membros desfalecidos observavam-no a si mesmo, e Vivelti sentia apenas o som rouco da sua respiração fraca em fios agudos. Notou que estava virado de costas. E ao abrir os olhos formas negras entrelaçadas em ramos escuros bloqueavam-lhe a claridade;. Uma luz brilhante, mas invisível – como se a luz proviesse de todos os lugares, reflectindo-se no chão e explodindo num onda contínua novamente em todas as direcções, de um Sol ausente. Cálida. Filtrada por rasgos de sombra que se moviam. E ao abrir os olhos, viu que estava debaixo de uma árvore.
A macieira. O pomar. Exclamações na cabeça por toda a parte. E o seu corpo – tão esgotado.
Onde tinha ido a Mina? Ao levantar-se, parecia-lhe, olhando para o horizonte do lugar de onde pensava ter vindo, existir – atrás das (névoas) – os contornos de uma rocha negra com uma abertura desvanecendo-se contra a erva e a madeira das árvores que cresciam à sua volta. Os arbustos, descontrolados.
Algumas aranhas pequenas cairam da árvore onde estava por baixo. E ao tentar levantar-se – sentiu um cheiro no ar igual ao do quarto dos sólidos vivos. Em frente olhou. a terra era verde das ervas rasteiras e amarela da água estagnada, e preta da lama. A morte rondava, ou ameaçava rondar. Chegara. O pomar, antes do pântano. Tinha conseguido sair da Mina. E em frente olhou de novo – mais névoas depois das árvores, a humidade podre as águas dos charcos e dos pântanos.
Levantou-se e voltou-se a encostar ao tronco da macieira onde estava, e esvaziou o cantil de água na boca e na garganta. Pôs-se de pé de novo e tentou observar o sítio à sua volta, enquanto se distanciava da entrada, ao longe, da Mina, e caminhava, trôpego, em direcção ao pântano. E já não estava excitado ou extasiado. Apenas, à medida que caminhava para o pântano ocre, perdia cada vez mais a noção de certas coisas. Como: Nunca se percebe bem quando começa de facto um pântano ou se entra nele, porque funde-se, como um buraco negro podre, na saúde da terra fértil, e corrompe-a com tudo aquilo que precisamente deveria dar vida. Mal se apercebeu, estava embrenhado quase nos seus limites. O sítio era estranho de tudo o que tinha encontrado. Parecia não se ter distanciado muito da Mina, Mas ainda não entrara no pântano. Ia deixando o pomar para trás. Podia sentir a terra lamacenta e as botas nela a afundar-se, como o aviso de uma barreira invisível.
Até que, finalmente, viu-o: ou julgava vê-lo. As árvores retorcidas abraçadas e fustigadas por ervas altas e arbustos cinzentos e amarelos. Ramos partidos ou inchados pela água. Mas – nenhuma entrada discernível. E tarde
demais, percebeu que já não estava sequer na Mina, ou propriamente no seu mundo: estava num sítio completamente diferente. E então o medo, adormecido, assomou-lhe tão urgente e imediata que estacou de forma absoluta no local onde estava. O medo, pulsando-lhe no peito! O medo, tremendo-lhe todo o corpo dentro dele! O medo, ao ver - que forma era aquela que parecia rondar Vivelti e que ainda não tinha reparado, atrás da vegetação? Que sons ritmados e pesados eram aqueles;, que - pareciam patas? Patas de um animal? - E ouve um ronco. Algo está ali perto! Algo sentiu a sua presença e talvez ainda não o tenha visto mas - sabe que está ali, ali um intruso nos seus domínios! Um animal selvagem, as formas a movimentarem-se entre a vegetação depois da entrada do pântano – um animal de grande porte, um animal grande e pesado. Os roncos, de novo.! - Vivelti sua, e – a morte, a sensação de morte. O animal está cada vez mais perto! E então, por uma chance súbita de lucidez, nas falhas de folhagem dos arbustos selvagens, vê-se um rasgo de pele rosada e molhada, e Vivelti vê os contornos de um focinho e o começo de um dente grande como uma faca.
Invocando toda a sua força para as suas pernas, quebra o jugo do terror; e, ao virar-se par trás e fugir, tropeçando e caindo na lama e levantando-se em pânico e continuando a correr sem olhar para trás, sente ainda um ronco, mais um ronco, perto, da coisa que sentiu a sua presença e procurava por ele, quase a encontrá-lo, perto de mais, o ronco e outro, e Vivelti foge, e continua a fugir mesmo sentindo as patas a ressoarem no chão, mais perto e mais longe, correndo, correndo sem parar e sem nunca olhar para trás, perdendo a sacola, vendo a entrada na Mina num buraco escavado na rocha, atirando de qualquer forma o corpo entrando de novo dentro dela, deixando para trás a entrada do pântano ocre e do pomar, desses lugares diferentes num outro mundo para correr;
E fugir, fugir à sua morte em forma da silhueta - demasiado perto para estar longe, demasiado perto - de um Hipopótamo
Parte Final
Reclama
a tua sanidade.
E foi assim que Vivelti se viu do outro lado da parede.
“Do diário de Vivelti:
As coisas que nos tornam insensíveis ao nosso redor, e se tornam também elas insensíveis, indiferentes ao nosso redor, como sons espalhados, ainda que em melodia, sobre as paletas tridimensionais do mundo físico e objectivo, quando indecorosas, ou indignadas com a nossa falta de tacto (suponhamos; sim, suponhamos que possa ser o caso) podem rebelar-se, ou darem-se a conhecer das formas mais imprecisas, mas duradouras, que possamos compreender – sendo muitas vezes o seu propósito traduzir-se, como em perspectiva antagónica pura, num exercício ideal dessa mesma imprecisão, um desafio à nossa própria compreensão delas mesmas.
No fim porém, parece só sobrar ruído”
Vivelti voltou a pôr-se de pé. Com as duas mãos, colocou o caderno de couro castanho dentro da sacola. Tentava permanecer objectivo, e imparcial, mantendo a calma face a uma situação dessas. Tentando parar um pouco, escrever no caderno de explorador algo que possa ajudá-lo a relembrar-se do terror que sentiu na Mina do Professor Strutermutter no futuro quando estivesse em casa ajudando-o esse pensamento mas, já era tarde demais como um homem não é uma mulher e um garfo não possui as características únicas e salgadas de medo de uma queda livre já a Mina o puxava e evitava, lograva obtê-lo através do corredor que se comprimia e distendia como movimentos peristálticos, sou eu que ando ou não, e como é que mas tudo com calma e tudo a seu tempo tentava repetir sofregamente mentalmente Vivelti para não se assustar demasiado, embora falhando. Se tivesse a oportunidade, mas não tinha, as suas sinapses estavam a estalar com o característico clique acídico e metalicamente ecoado que dizia, e já estando a preparar-se, problema, um novo problema, subconscientemente semicerraram-se os olhos um pequeno de nada, chegou a uma porta dupla de madeira com laivos escarlates de metal nas extremidades com a frase escrita na madeira que enunciava “FÉNIX FUNK (PROBLEMA) 5”. Entrou. Viu-se numa enorme piscina com as portas a fecharem-se atrás de si (típico) numa sala coberta pelo que lhe pareceram ser azulejos, da base ao topo azuis, nas paredes, e no meio uma enorme piscina cúbica que Vivelti não sabia identificar. A aágua era azul, e a aágua era aágua + aágua. No centro da piscina, e ao fundo, encontrava-se um enorme ovo. O ovo da Fénix, talvez. Vivelti não sabia nada de criaturas da mitologia que tivessem a propensão de, talvez, serem reais. A aágua estava quase imóvel como todas as águas, e a divisão de azulejos e piscina não tinha mais nada a não ser estar coberta de azulejos, uma piscina, e um ovo de Fénix dentro da piscina; imóvel; adormecido. Chegou-se à borda da piscina. A aágua quieta flutuarejava no tecto de azulejos. Como ressuscitar a Fénix e fazê-la emergir do seu fogoso casulo, agora apagado? Vivelti caminhou pelas bordas da piscina, observando. Parou para pensar, e de pensar. Até ao fim da sala, foi. Da sala húmida, do aquário. Na outra extremidade, chegou às portas que aparentavam parecer estarem fechadas. Os laivos de metal eram, nesta porta, de metal. Depois de segurar nos batentes em forma de braços unidos, de cada lado, de ambas as portas, testou a sua força, abanando-as. Não estavam fechadas. Abriu uma das portas (a esquerda) viu que a mina continuava como sempre tinha continuado, vermelha, amarela, pouco iluminada com luzes a penderem do tecto, saiu da sala e fechou a porta atrás de si, sem se virar para trás. Tinha continuado.
O MINOTAURO DEGOLADO E OUTROS ESTRATAGEMAS
Foi por esta altura que Vivelti passou, no corredor, pela cabeça de um touro com a língua de fora cortada e pregada a uma tábua de madeira, um troféu de caça de alguma espécie. O seu pé partiu também uma pequena caixa transparente de um material semelhante ao vidro, que não vira abandonada no chão. Por baixo da cabeça do Minotauro, com os seus olhos expressivos ainda quentes; do seu pêlo castanho e preto ainda algumas gotas caíam, estava uma placa de latão (latão.) com a inscrição Minotauro Pargamasso, de quem foi obtida a justa recompensa pelos seus serviços inúteis. A placa estava ainda fresca e sem sinal de contaminação pelas forças que moviam a mina, ou então ele faria parte dela como conceito indissociável. Mas não fazendo parte – como se, em vida, embora um Minotauro, a existir, tivesse feito parte da aparente anormalidade que povoava um sítio destes, onde coisas que Vivelti consideraria não serem possíveis o eram de facto, agora morto ganhava uma nova frescura conceptual; livre, ainda, do jugo de realidade que a Mina parecia impor – até, por suposto, às coisas inanimadas. Vivelti decidiu arrancar a placa de latão com a inscrição – que, apesar de já ter sido manufacturada por forças na mina, estava ainda fresca ao toque, como já fora dito, parecendo reluzir como um farol bem forte na escuridão que era a confusão externa que Vivelti, dos seus olhos ainda protegidos com rudes espectoscómetros (Vivelti usava um dos protótipos; Miguelti declinara por não gostar de adornos oculares, e o professor Strutermutter exibia em frente das córneas o modelo final, mais elegante e com possibilidade de visualização de ondas rádio por curtos períodos de tempo, antes de as baterias colocadas acima de ambos os lóbulos das orelhas se gastassem). Pô-la na sacola. Agarrou-a bem ainda com força, antes de a largar. E continuou até o corredor se dividir, virou à esquerda e continuou até que o corredor se dividia de novo, e virou à direita. O corredor dividiu-se de novo e virou à direita. E depois o corredor continuou em frente e a descer até nova encruzilhada e Vivelti decidiu virar de novo à direita. A mina contorcia-se, exibia por vezes as características marcas de unhas nas paredes, tinha lâmpadas fundidas pelo meio, e, por vezes, havia ameaças de estalagmites, mas nem um cogumelo, uma aranha, um verme ou sons naturais além das pedras a rolar, da poeira a ser comprimida pelas solas das botas de Vivelti, dos pingos de água a estalarem no chão, do som inquietante da água a escorrer por algumas paredes polidas. A mina simplesmente descia, dava voltas como um intestino, e parecia crescer a cada passo que Vivelti dava. E Vivelti supunha estar perdido. Talvez a Mina tivesse desistido de si, e quisesse matá-lo fazendo-o andar até à morte por corredores infinitos, entrecruzando-se uns nos outros. O fio de Ariadne que tinha consigo era apenas a sua mente, que voava com as dúvidas normais de cada ser – as suas, particulares, eram próprias – e depois se refastelava na desistência normal de quem não compreende e decide simplesmente aceitar. Sobrevivendo, assim, somente pelo seu espírito de irreverência.
Talvez, pensou, a Mina não seria a Mina que estava à sua frente, mas podia ser um mar, uma visão de mar. Com Vivelti a observar de um promontório, ou de um banco de areia, a uma distância não perto demais. Ainda a ver a água cinzenta em revolver-se em beatas de espuma, brancas, atiradas contra o céu sem Sol, nublado, em ondas. E nesse mar e nessa praia o céu estava rasgado de nuvens frias e quase pretas, num contraste de rosa à frente do céu. E podia sentir-se pequeno, se fosse só ele e o mar. E ele e as ondas a bradarem contra as rochas, a pararem sem vida na areia, sem ninguém. Com as gaivotas apenas, a voarem contra essas nuvens cor de chumbo, pretas quase e a destacarem-se, elas pretas também, como Vs no céu rosa e de rastos amarelos de outras nuvens abandonadas, ainda a guardarem a luz do Sol perdido, esquecido. Ou porque eram pretas, podiam ser corvos. Vivelti não podia saber; os pássaros voavam alto demais, em círculos. E não havia ainda estrelas, e talvez a Lua estivesse escondida. Invisível também, atrás das nuvens, a espalharem-se contra todo o céu, solto, sem nada a não ser céu, sem edifícios ou falésias mais altas a taparem-no. Só céu e mar, com Vivelti, podendo imaginar os corvos. Um deles com língua cortada, um qualquer. Voando em círculos, lá em cima, com as gaivotas. Um reino silencioso entre o mar e o céu, e um homem. Não há maneira de atravessar, disse-lhe o corvo, que pousou no seu ombro, atrás de si, podia imaginar Vivelti. Como dizendo-lhe, Saí de lá, e agora sinto o vento do crepúsculo, agora sinto a salinidade que é selvagem, e ouço o estrondo, o ribombar das ondas contra a areia molhada, contra as rochas ásperas e pretas. E mesmo assim não posso atravessar o mar. Dar a volta e deixar a praia para trás. Em breve será noite, e cairá a escuridão. E ficarei perdido outra vez. Mas talvez possas sair daqui, disse-lhe o corvo. Este céu rosa desfeito, e rasgado pelas nuvens escuras – esta paisagem desolada, sem nada, que se criou. Este mar oceânico, com as ondas vivas, constantes. Como. Tiraste uma placa de latão com uma inscrição da cabeça decepada de um Minotauro. Tiraste os teus óculos para ver os pássaros, lá em cima, a voar. Sim, a voar em círculos. No fim deste crepúsculo. Por momentos deixei-me apenas observar. Mas não sei nadar. E não tenho um barco. Voltar é apenas relativo, disse-lhe o corvo. Sim, talvez seja verdade, disse Vivelti. Mas não consigo ver. Ainda é complicado. Não entendo. Este mar esfria-me o peito – está aqui, é real. Já não estou na Mina. Mas como ainda andar para a frente? Como atravessar – sair –; Estás a ver a placa de latão que tiraste, instruiu-lhe o corvo. Usa-a. Como? Vai até à praia, disse-lhe o corvo, à areia molhada, que encontra a espuma gorgolejante das ondas, e usa-a como uma pá. Tira o maior bocado de areia que conseguires, e atira-a ao mar. Depois, põe a placa de latão em cima do lugar onde a areia caiu no oceano, e ela tornar-se-á num barco. Embarca nele, e usa-o para atravessares o mar. Mas não poderá haver uma tempestade no mar que me faça virar, ou na noite cerrada que cair, perder-me, sem saber para onde navegar, no céu sem estrelas? Será o barco seguro? Não te irás perder nem cair ao mar para te afogares, nem perderás o tino ao teu trajecto, mesmo sem pontos cardeais, assegurou-lhe o corvo. Com esse barco, chegarás ao outro lado.
Vivelti olhou para cima, ao vento forte da praia. As aves ainda voavam, em círculos, no céu, lá em cima, mas eram já poucas. O rosa do céu desfalecia-se ainda mais, perdendo-se cada vez mais o crepúsculo, e os resquícios dos últimos farrapos de luz moribunda. Era já menor. A noite estava quase a cair. E olhou de esguelha para o corvo pousado no seu ombro, de penas pretas. E tu vais vir comigo, no barco, até ao outro lado? Não vou ir contigo; mas existo dentro da tua imaginação. Aparecerei do outro lado, sempre que me chamares. O seu olho amarelo olhou para Vivelti, que olhou para ele. O corvo falante piscou-o uma vez, abriu as asas, e levantou voo.
Vivelti ficou a vê-lo subir até ao céu, junto aos outros pássaros marinhos.; mas perdeu-se depressa. A escuridão era agora quase total. Vivelti foi até à areia fosforescente. Sentia-a partir-se, húmida, contra as suas botas, sentia a aragem da água atirada contra o corpo e a cara, enquanto tirava a placa de latão da bolsa. Enterrou-a na areia, com força, e levantou-a antes de a atirar contra as ondas, deixando cair bocados de areia, misturados com espuma e água. Atirou a areia contra as ondas, e o mar já lhe chegava ao tronco, quando tentava aproximar-se da areia, e da placa de latão, a servir de casco, ou vela a faiscar no fim do crepúsculo.
Nanou. Nadou até ao barco. Sentiu as roupas molharem-se entre o frio. Na água preta da noite. O barco era feito de madeira, com um mastro, e uma vela cinzenta. E assim ficou perdido no mar. Logo, a costa tornou-se invisível. E a água que sentiria na cara e no corpo podia ser da chuva, ou do mar encapelado. E como estava. O vento soprava, forte, de todas as direcções. O barco oscilava, e balançava, como a casca de uma noz, perdida no meio do oceano. A tempestade instalou-se, entre o barulho ensurdecedor do vento e do mar. As estrelas apagaram-se. E Vivelti, cego, sem nada ver, para se orientar, só podia agarrar-se às cordas do mastro, tentando navegar um barco sem rumo. Fustigado pela chuva intensa. Atirado de onda em onda, subindo, caindo no mar. Submergindo. A corda, agarrada a uma das mãos. Só o barulho do vento e da tempestade, na escuridão, sem luz. Ecoavam-lhe o barulho de campainhas, por vezes. Os seus olhos estavam fechados com força, e as suas mãos tentavam agarrar a corda, enquanto o vento o tentava levar. O mastro abanou, a vela rasgou-se. O mastro partiu-se. O barco girou descontroladamente, de vaga em vaga.
E
Vivelti não sabia dar o nome à tempestade. Não era uma palavra nem um número. Não era maligna ou esotérica. A chuva torrencial, o vento ciclónico, as vagas gigantes nada lhe diziam
ou
murmuravam. Eram só ondas, numa tempestade sem nome, sem designação. As palmas das mãos estavam em sangue. Num tufão de vento foi atirado para fora do barco. E o seu corpo ficou suspenso no ar. Entre a chuva, com a mão esquerda ainda a segurar a corda, presa ao barco. Esperou o contacto com o mar, afogar-se, no meio da escuridão, nas ondas grossas: dentro da água, dentro do mar. Na tempestade. A escuridão dizia-lhe que estava a cair em direcção ao céu, mas finalmente atingiu a água e o barco despedaçou-se, agarrando ainda uma corda já presa a nada. Foi arrastado pelo mar, pela tempestade, entre o oceano, para o infinito do preto da água. Atirado de onda em onda, de vaga em vaga, dentro do mar, debaixo de água, caindo, descendo, deixando o barco para trás.
Adormeceu.
O dia seguinte saudou-lhe as pálpebras gretadas, cheias de sal - agora falso. Os lábios estavam rebentados, e o seu corpo jazia, de bruços, na pedra polida e húmida da mina. Ou seria um rochedo? Pareceu-lhe ter uma visão de um brejo, com urzes, e outras plantas, e troncos de árvores mortas, a saírem das águas estagnadas de um pântano, com um Sol a cegá-lo de frente, de uma luz amarela e brilhante, e verde-limão... com... laivos de luz talvez a emitirem sons... a entrada de um pântano...
Estava de novo na mina. A sua mão ainda segurava a corda inchada de água, que dava para o barco. Tentou levantar-se. Um pouco atrás de si, os restos de um barco destruído e esfacelado encontravam-se no chão. Passara para o outro lado. Mas onde estava. E onde estava o corvo? Corvo? Corvo? Olhou em volta. Apenas mais uma gruta. Mais uma galeria, ou mais uma caverna, saída nos dados. Esta era apenas um salão com uma porta como a das igrejas, ao fundo, em madeira vermelha. O tecto tinha as suas normais dezenas de metros, o comprimento da galeria também. Onde estou? Que sítio é este? Que sítio é este? Corvo... Corvo
Levantou-se. Trôpego, desorientado. A sua capa ainda estava molhada. As memórias recentes estavam a atormentá-lo. A Mina estava viva, como ele.
Pela primeira vez desde que entrara, sentiu-se inseguro. Sozinho, abandonado, com fome. Sem nenhum Tigre Azul à vista ou saída. Sem nenhuma razão concreta para estar ali.
Encostou-se a uma parede, enroscou-se na capa, e espiou a porta, ao fundo. Imóveis os dois, assim ficaram por algum tempo. As dunas de areia ao pé das paredes envolveram-no, e o espigão salgado onde se sentara, com o cansaço, ameaçava desfazer-se. A sede tomou-lhe a boca, enquanto o Sol subia, pulsando no tecto da mina, desvanecendo-se entre as ondas de calor, e vapor seco, e os olhos, quase se fecharam. Contra a areia que cortava o colo. Cortando el cuello… A garganta secava e a capa quase que esvoaçava, parada, no vento imóvel laranja do deserto. Os montes de areia poeirenta, vermelhos e laranja contaminavam o céu pálido, falso. A porta estava, no deserto, demasiado longe – longe. Atrás das dunas, perto, mas longe como as montanhas ondulantes, visíveis apenas como riscos desvanecidos.
Os lábios gretaram e a consciência retornou, quando teve a força mental de perguntar – porque o seu corpo não o queria,. Há quanto tempo estou aqui? O calor cozinhava-o. A cabeça pendia-lhe em pluma, caindo, em direcção ao chão, à areia fina e amarela. Uma mão em ferida, seca e queimada de agarrar na corda do barco, encontrou na sacola o seu cantil de água. Evaporou-se em contacto com os seus lábios sequiosos. Secos e sibilantes, como a palavra. A matemática era, agora, fácil. Ia morrer. Ia morrer se não mudasse. Ia morrer se não vencesse a insolação, a insolação inexistente e a ilusão, e caminhasse no deserto fulgurante, cuja luz reflectia-se da areia, e lhe incinerava as pálpebras, lhe queimava a pele, o deixava delirante. Com o canivete, rasgou a capa, em gestos imprecisos – dir-se-ia que esbracejava apenas, lentamente, as mãos pelo ar,, e fez um turbante. Esperou, então, nos limites da sua consciência, que a noite chegasse. E esperou meses. Deixando-se bater pelas ondas de calor ondulantes no seu corpo queimado, e enterrar-se, lentamente, pela areia que fazia a sua travessia no deserto, passando por si, enterrando-lhe as mãos, os pés, nas dunas, chegando-lhe aos antebraços, invadindo-lhe o nariz, e por fim tornando-o dormente aos sons, ao entrar-lhe nas narinas, e parar-lhe a respiração, repousando à entrada dos pulmões, secando-os. Nos seus lábios transformados em pedra. Repousar debaixo de um fino manto de areia. Até sair da sua condição de estátua e renegar o manto de calor como objecto avulso no deserto sem nome, e sem ninguém.
Até que a noite caiu como uma gravidade roxa, no céu. Os seus olhos iluminaram-se com o clarão roxo e as estrelas, aflorando atrás do céu, perto do espectro azul-escuro do fim do dia. Os seus membros descalcificaram-se. O seu sangue voltou a correr, como se não fosse calcário dentro do seu corpo. As suas roupas começaram a mexer-se, a esvoaçar um pouco no ar. Os farrapos que lhe restavam. E a sua cara voltou a mexer-se também. E ficou noite no deserto.
Levantou-se no meio de uma enorme imensidão fluorescente de pedras, areia, dunas, e noite fresca, fria, parada no ar, como se também ele próprio estivesse morto. E disse, voltando a cair de joelhos, pendendo-lhe a cabeça, descontrolada, com um safanão.
- Corvo.
Com pequenos assomos do Professor e do seu amigo, lembrando-lhe algo que era suposto saber.
- Corvo…
O deserto roxo queria transmutar-se. Vivelti, sabendo-o, talvez também o quisesse. O frio da noite lembrou-lhe de uma ave negra a voar, até ás imensidões de um céu numa praia ao pé de uma falésia. E antes disso até um labirinto onde se perdera, onde quisera encontrar alguém, descobrir uma coisa.
- Corvo
As paredes arranhadas na Mina por um desconhecido animal. As salas, as galerias, os problemas, os seus amigos. O cantil de água, de repente, cheio de novo, na sua sacola. E a sua capa intacta ainda, com o turbante que fizera a pertencer-lhe a um outro momento, atrás de um sonho – os espectoscómetros ainda nos seus olhos, a filtraram a luz do lugar onde se encontrava, e a dar-lhe um tom verde, brilhante na noite. O deserto roxo e as montanhas desapareceram com o número de passos suficiente que deu. Não foi como um sonho consciente, em que tivesse voado pelos lugares que percorrera, ou imaginado apenas que a ilusão que ocorrera tinha-se tornado realidade, passando por ela pelas normais contracções temporais do delírio, e do sonho. Somente estava em frente às grande portas vermelhas, ditas já como as de uma igreja, de madeira, prontas a abrir, deixando-o passar para outra parte da Mina, mais perto ou mais longe de encontrar os seus amigos, mais perto ou mais longe de perguntar ao Professor, se o encontrasse, porque tinham de facto vindo ate aqui, não saberia ele os perigos existentes neste local, e porquê, porquê procurar o Tigre Azul se ele estaria aqui, perdido no meio de figuras geométricas com personalidade, corvos falantes, paisagens e lugares tão verdadeiros quanto as suas próprias sensações, armadilhas mortais, criaturas mitológicas mortas ou adormecidas como um grande sarcasmo ás suas próprias existências, e ainda não tinha visto nenhum tigre, azul ou doutras cores, onde se esconderia ele, e porquê aqui, e porquê a sua importância, nesta Mina, neste lugar onde o espaço e o tempo se mesclavam de maneiras diferentes para, juntos, em sintonia ou guerra aberta, presentearem quem aqui se intrometesse com o seu estilo próprio de Realidade?
Antes de abrir as portas e sair, decidiu olhar para trás. Estava apenas num salão, cuja outra extremidade possuía uma abertura na rocha polida, com lâmpadas a iluminarem o tecto, algumas partidas, presas a um cabo preto pregado ao tecto, um salão simples, com algumas estalactites no alto, algumas poças de água no chão em depressões, um rapaz, e duas portas idênticas, dando para outro lugar qualquer, desconhecido. Imprevisível.
Ligou os espectoscómetros. À sua frente, a imagem da Mina desapareceu, sendo substituída por, através de um aparelho meramente mecânico entre o ar à sua volta e a íris, apenas estática.
TUPAC E A ESFINGE
As portas davam para um corredor onde, após Vivelti o ter percorrido alguns minutos, revelava-se largo, quase recto, coberto, no chão, e encostada à parede, da mais variada tralha. Vivelti observava os montes de objectos sem lhes tocar enquanto caminhava, com interesse, e a cautela já própria de não saber o que esperar da razão de aquelas coisas estarem ali. E – mas o que era toda aquela quinquilharia.? Tudo o que poderia imaginar continha exemplares naquela parte da mina, para trás, no entanto, toda despida de coisas. E aquilo lá ao fundo em eco a vir da escuridão em formato ligeiramente arritmado e rápido, algo circular parecerão ser passos; e a mina não parecia, ainda, ameaçadora. À medida que percorria o corredor – espalhando-se por dezenas, dezenas, centenas de metros. A indecisão de render-se ao desinteresse de remexer nas centenas de objectos que estavam no chão da mina e continuar a andar para encontrar o Professor e o outro idiota, na necessidade de encontrar uma saída (ou reavaliarem o plano que os tinha levado até ali, desta vez, com a reafirmação veemente de Vivelti, pelo menos, de estar a par de tudo), ou deixar que o vício de assimilar conhecimento de todo o tipo o vencesse estava tornar-se um maior desafio do que o que esperava. Para onde iria, sabia e não sabia; só havia um caminho, convenientemente mal iluminado lá para a frente. O corredor continuava com luz própria – desta vez eram tochas – e o limiar de escuridão era mais curto ainda, que Vivelti apenas consideraria como remotamente estranho; e encostadas ás paredes, ou pingando para o chão, os montes de tralha iam persistindo, revelando-se enquanto caminhava. Bonecas e pastas apertadas com cordas a transbordarem papéis amarelos e encarquilhados da humidade. Utensílios para a cozinha e sucata. Caixas, algumas abertas com livros, outras com mais tralha, algumas mais pequenas com discos transparentes incrustados, pedaços de metal deformado e material de laboratório partido, artefactos e objectos de navegação, comandos, estatuetas de metal ou barro, transístores, armas castanhas e granulosas de ferrugem, mobília escavacada, peças de olaria em cacos. Ia andando lentamente pelo corredor, olhando em volta. Vivelti começava a estranhar,
Mas ainda antes de reflectir que fazer com tudo o que se deparava à sua frente na sua caminhada, ou pensar em poder usar algo do que ali estava para o ajudar a sair dali, o ecoar arritmado de passos fez-se ouvir. O ecoar de passos estrambólicos, imprecisos, urgentes, abafados pela distância, mas passos de humano, os primeiros passos que ouvira desde que entrara na Mina, quem seria? Vinham na sua direcção, do único caminho existente. Sentiu uma ansiedade que, desde que entrar na Mina, ainda não tinha sentido antes. Levou a mão à sacola – ainda intacta com todos os seus pertences. Agarrou na única maçã branca que possuía.
“Do diário de Vivelti:
Encontrei um negro que dizia chamar-se Tupac depois de me ter separado dos meus companheiros, o primeiro ser humano que vejo desde então, o meu interesse e a minha ansiedade, como sugerindo que talvez anos ou meses, quando na verdade não é assim, se teriam passado desde o meu último encontro com um ser consciente da minha espécie afigurou-se-me correcto de sentir e supor, depois de todas as minhas atribulações neste local estranho como as costelas nuas de uma corça acabada de degolar, onde até Tesla perderia a esperança de inventar algo para o tirar deste lugar, eu penso. O seu discurso era incoerente mas falou-me de si –
”
- Quer água? Estou a oferecer, mas estou cansado, e talvez nos possamos ajudar um ao outro a sair deste lugar… escolho sentar-me. Como estava a dizer, que…
- Hã? Ouviste-me?
A Vivelti, Tupac parecia-lhe um profeta. As introduções foram feitas com os resquícios de sanidade que ele duvidara existirem na Mina por alguém, escapando à morte e sobrevivendo, como dizia, por tanto tempo, falando-lhe do amigo, da conversa que tiveram, avisando-o dos perigos que poderia encontrar, apresentando-se como um amigo, revelando todas as falhas e inseguranças que seriam de esperar numa verdadeira pessoa naquela situação. Fizeram uma fogueira com material inflamável que encontraram nos montes de tralha; Vivelti acendeu-a com o seu kit de acendalhas portátil. Ficaram algum tempo a descansar, e a conversar, apesar de Vivelti ter que ter insistido para que Tupac, bastante inquieto, se sentasse. Tudo o que de normal haveria para ser dito pareceria mundano.
- Então, veio do futuro.
- Se tu dizes que estamos no ano de 1908, vim do futuro de certeza, e parece que ando a recuar cada vez mais no tempo.
- Como é que ainda não conseguiu sair daqui?
Fala Tupac –
- A Mina – é o nome que lhe dou – é a Mina. Não será completamente real, real, talvez, no sentido que tu e eu lhe damos; no sentido de ser real nesta realidade, mas sim numa
outra, onde nós, aí, seríamos a ilusão, presa por estas mesmas forças a esse plano existencial. Não consigo explicar. Se fôssemos filhos do céu – sim,, o que seria este mundo sem as nossas próprias percepções? Alienígena. Ou inventado. Ou um sonho que se arrogará o... direito de ser real por estar, de facto, criado nas nossas caminhadas celestes enquanto filhos dos céus, mas... Talvez seja apenas uma ilusão, porque não pertence a esta realidade, mas somos nós, perfeitamente vivos e pensantes, que a justificamos ainda. E o que é que, ao fim e ao cabo, justifica a nossa própria existência, funcionando como prova, como certeza? Apenas nós próprios, enquanto certeza de nós mesmos. Sem a presença de algo nosso, do nosso real, cairá certamente nos meandros do esquecimento, ou deixará de existir, ou de ser percepcionada por alguém desta Terra. Pensei muito nisto, ao percorrer estes corredores e estes salões, estas grutas. Eu vou-te contar. Sim, as notícias da minha morte foram largamente exageradas – mas verdadeiras – consoante as provas físicas que de mim tiveram. Estarei morto de certa parte em certa forma, sim; mas persisto enquanto prova viva de mim próprio. Já ouviste falar no hipopótamo cor-de-rosa...? Não baixo a voz porque estamos muito, muito longe dele. E aqui o seu poder é diminuído. É a promessa de um poder, talvez... – mas aqui, sussurrou. – Ele não manda neste lugar.
- Não... não ouvi.
- É normal. É um demónio. Se calhar já o viste até – oh. – com roupas humanas numa figura humana, fora da Mina. Mas... não, talvez nunca o tenhas visto. Mesmo que o visses não saberias se seria mesmo ele, a não ser que ele te interpelasse. Falasse contigo, te fizesse uma proposta.? Mas aí terias de ser importante para algo ou alguma coisa que nem eu entendo perfeitamente.
- Mas o que é que ele pretende?
- Matar o Tigre Azul. Apanhá-lo, e matá-lo e destruí-lo e despedaçá-lo e torturá-lo de todas as formas possíveis, enquanto o devora e o reduz a nada. na ode mais perfeita de poesia física à violência que poderás supor que exista. Como uma autêntica verdade. Podendo portanto perguntar, se será ele próprio a personificação da...? – mas, não interessa,, acabar com ele até que nada mais reste dele. Nem sequer uma memória. Ouve-me – disse, calmo, agarrando-lhe os ombros, estando sentados lado a lado – eu desapareci do mundo de fora, desde mil novecentos e noventa e... seis... desde então...? sempre esta pergunta, dos... quantos anos? – o seu olhar vagueou pela escuridão sempre presente no limiar do conhecimento dos caminhos que os chamavam no silêncio dos seus percursos, túneis e corredores escondidos pela Mina, grutas e passagens – e ainda não o encontrei. Ando a encontrá-lo para ele. O Tigre Azul. A noite estava... sim claro que ainda me consigo lembrar. E estava no carro – ou a sair do carro – ? Por vezes perguntei-me muito no passado, se não estaria já a romantizar...?, mas depois porém, sim eu lembro-me que a noite é real não foi irreal existiu e o resto também as balas... Bom. Dispararam sobre mim. Tiros e tudo na noite na rua. Caí na luz fria das lâmpadas e não sei se foi já aí que eu já estava, aí... como aquelas manchas verdes e azuis contra essa noite que senti quando caí e me virei será que... Que podia – bom. Tu sabes. Que podia um preto como eu fazer. Já estava morto antes de estar morto,; considerado. E mesmo assim... senti o calor de algo... foi aí, o calor, de um poder demoníaco junto de mim. Longe mas fazendo parar...ou inverter o tempo numa fúria sem nome irresistível, como um silêncio tão mudo que rebentasse as barreiras da própria compreensão desse conceito... mesmo pela minha espinha acima e orelhas e tudo, pelo corpo todo, eu sentia as balas, e não eram as balas. O poder demoníaco. Mal caí. Estando já caído ou devendo já estar morto, não sei, como te disse. E sentia o meu corpo húmido. Isso já das balas – o peito a fundar-se dentro de mim, numa depressão, como uma, uma corda de dor vertical pelo meio peito afundado de baixo para cima, que era o meu sangue, ou mimetizava o meu sangue... ao mesmo tempo, o – tu não sabes a morte. Aumenta-te uma espécie de gosto a vinagre na boca. Tanto mais que tudo se despede num vazio como se desprezasse até o facto de achares que algum dia podia ter existido... numa segmentação rápida demais, e devia ser assim para o resto, e sim mesmo assim eu morria, mas mesmo assim... o calor estranho, o que te tinha falado, com uma suavidade que eu não imaginei, como uma certeza, diabólica. Uns instantes finais que não deviam ser finais, assim pelo menos não finais, assim... que mesmo que eu - ? mesmo eu a morrer pela primeira vez. Eu sabia. Uma pessoa sabe, sabes. Sabia que não devia estar ali, já ali, assim, a experienciá-lo enquanto me sentia a morrer, rápido, girando-se essa certeza sobre a minha própria... tontura final. Já – foi há tantos anos... – suspirou – Tu sabes o medo incompreensível , quase louco que sentes quando sabes que estás a segundos de morrer; não. Quando o teu próprio sangue está marcado com o destino imediato dos objectos. Apenas carne no chão, carne com a minha forma. Carne com a minha forma.
- O senhor morreu...?
- Não. Quem me dera. Não tenho medo. Mas não – não. Ainda estou vivo, é bom saber que ainda tenho a certeza de estar vivo. O tipo do Freud tinha razão na cena da... – mas mesmo assim porque... cansei-me, percebes, foi assim; e ainda estou. É uma hora malvada, a que vem depois da que passa. É tudo o que tenho. Mas e depois também penso, e se as balas, sim?, se as balas podes perguntar-te tu e eu também me questionei disso muito antes de agora, não eram também dele, a sua face naquelas pontas ocas que furaram a minha pele e me explodiram dentro do corpo projectadas, já a rirem-se, em riso das metralhadoras e das pistolas, todas com o seu nome e empunhadas no coldre por – também ele?, sim, e, também esse calor, antes e depois, essa sensação, essa malvadez na noite, essa malignidade no todo acontecer das circunstâncias que me levaram à minha morte? Pelo menos as balas... pelo menos o seu dedo esteve contido nesse...singular acto diabólico. A rir-se – a infectar-me no peito com a sua maldição superior a mim, o meu peito desfeito pelas balas. Hm, com o seu nome e o seu riso e a sarjeta. Caí do carro., estaria já aqui, na Mina nesta altura? Foi o meu corpo transportado para a Morgue e era outro Tupac que ficou entre o passeio e a berma da estrada a ser seduzido pelo hipopótamo cor de rosa? O hipopótamo cor-de-rosa. Disfarçado de humano, ou na sua verdadeira pele? Disfarçado não, ele não precisa de disfarces. Era ele, e aquela era a sua verdadeira face. Não – não ouvi do Tigre Azul logo nessa altura, aliás quais serão os planos dele para mim a existirem; nunca senti nada dele. só senti o calor. o calor maligno com a aproximação do hipopótamo – como o prenúncio de coisas terríveis. S. Sempre aquele calor. Mas tocou-me ou falou-me, e eu parei de morrer. Ou fiquei morto definitivamente, mas era já outro eu, o outro que permanecia na sarjeta, e eu que permanecia na sarjeta, ambos baleados mas um tocado e falado pelas mãos e sorriso de um hipopótamo cor de rosa, e o outro não.
“ a minha cabeça aberta. O peito afundado no meu sangue. Na espuma do meu sangue. E o hipopótamo estendeu-me a mão. No último momento. Estendeu-me a mão, antes do último segundo, antes da eternidade... parou a evolução do meu sentimento de morte. A Mina, disse ele. Não, ele não disse a Mina. O que disse... : pronto, fez a proposta. Ou talvez como se estivesse predestinado... talvez fosse suposto eu estar aqui. Mas só estou à procura do Tigre Azul... vi-me aqui. Num corredor escuro, depois da proposta do hipopótamo. Ganhar de novo a minha vida, caminhando para o desconhecido, tentando encontrar o Tigre Azul.
- Ele disse-lhe como era?
- Fui avisado que teria muitas formas – Tupac coçou a cabeça rapada, molhada. Brilhava à luz amarela, afastada, das lâmpadas asfixiadas pela escuridão. Muitas formas. Talvez eles... sejam irmãos mas.
- Irmãos?
A escuridão parecia estar a apossar-se deles, e invadia-os agora, por fora, até deixarem de se ver, e sentirem a claridade baça da luz como pontos fugazes, ao longe, cada vez mais indistintos...
- Tupac...
- Eu sei. A luz. É normal. A Mina vai encher-se de escuridão agora.
Até que Vivelti só distinguia os controlos de Tupac, sentado ao seu lado. O corredor deixara de ter princípio ou fim. As paredes dissolveram-se, apagando-se notando-se cada vez menos quanto maior era o esforço de ainda as encontrar. Eventualmente deixaram de existir. E as lâmpadas eram agora sóis de galáxias distantes. Estavam sozinhos no Universo.
- A Mina vai voltar a mudar – disse a voz de Tupac, perto de Vivelti. E eu vou voltar a perder o meu caminho. As pistas que seguia. É esta frustração permanente. E depois ainda vai vir aí a Hetero-esfinge... – O Tigre Azul – o caminho para o encontrar não começa aqui, começa no pântano.
- No pântano?
- É aí a sua casa – ou foi o que o hipopótamo me enganou. Mas começa no pântano. Na Mina há um pântano perdido, no início ou no fim dela –
- Tem de ser no fim – apontou Vivelti, centrando o seu olhar nas luzes, demasiado distantes – eu vim de onde a Mina começava. Eu e os meus amigos.
- No fim, então – com indiferença à informação de Vivelti, como sabendo que era mentira – e é aí que está a sua casa. Ou é aí que o posso apanhar, encontrar, entregá-lo ao...
- Mas – questionou Vivelti – como é que sabe sequer que o consegue apanhar, vencer? Capturar
- Quem é ele? – questionou Tupac – Não é? Também não sei. Mas é a minha única alternativa não renegar as respostas a essas mesmas perguntas. A minha única esperança. Entrar no pântano – qual era o nome do ... – e encontrá-lo
- Mas... E se o hipopótamo o enganou? E se o Tigre Azul não está aqui na Mina, nem no pântano?
- A minha busca continua, mesmo com o hipopótamo também a tentar encontrar o pântano, ou a tentar viver nele, ou para encontrar a minha saída e fugir.
- Fugir. – A minha saída?
A escuridão começava a desaparecer gradualmente, até ser de novo substituída pela penumbra, e pelos contornos do chão, do tecto, das paredes molhadas e polidas, ou secas e pontiagudas, princípio e fim, num túnel estreito onde, provavelmente exactamente a meio, se encontravam. Os dois estavam sentados no chão, com as mãos apoiadas nos joelhos, e nenhum deles tinha desaparecido. Tupac, porém, mexia-se o menos possível, como se tivesse medo de se descolar da imagem tridimensional, fixa, onde se encontrava, e nãoconseguisse encontrar o caminho de volta para figurar, como era suposto, no retrato.
- O pântano... – Murmurou Vivelti.
- O pântano – disse Tupac, levantando-se, estendo-lhe uma mão. – Queres vir comigo?
Vivelti olhou para a mão estendida, e a cara fez um estranho esgar de dor.
- Para onde? Para o pântano? Procurar o pântano? O Tigre Azul?
- Sim
- Não posso. – respondeu, a levantar-se – se esteve aqui todo este tempo sem encontrar uma saída, ou um pântano, ou o Tigre Azul, como eu, achas que faz mesmo sentido ir consigo procurar o que quer que seja? Eu
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“Do diário de Vivelti
O silvo que se fez sentir na Mina fez com que – ou teria sido ela causa ou efeito, não o sei – as paredes se, talvez expandissem, e uma criatura com vestes e impregnada em si mesma de simbologia egípcia, com cerca de 6,74 – 6,80 metros de altura, conjurou-se à nossa frente (desenhos pormenorizados da criatura em anexo 56), e, apesar de já ter passado aqui por algumas situações de – por serem tão distantes da normalidade – terror absoluto, nunca ele terá sido tão forte como quando vi que as suas intenções eram, caso não jogássemos o seu jogo, assassinas; uma esfinge, de nome Hetero-esfinge, conforme Tupac me disse depois, o jogo é o mesmo de todas as esfinges naturalmente, e nessa consideração a informação de Tupac vai no sentido certo, a pergunta era ao mesmo tempo que nos perseguia e nos tentava matar com o seu chicote gigante e os seus raios oculares incineradores entre a vida e a morte o que se encontra, e Tupac correu e fugiu tal como eu mas a Hetero-esfinge finalmente apanhou-o entrelaçando o chicote no seu tornozelo e atirando-o violentamente contra a parede, e bem Tupac saiu-se maravilhosamente com todas as concussões que poderia ter como consequência e gritou encontro-me a mim mesmo, a Hetero-esfinge falou – e quando digo falar há que fazer aqui uma nota, ela falava, mais uma vez recordo o meu amigo do qual eu me separei que poderia mais facilmente descrever a forma como falou esta esfinge – as suas palavras não saíram propriamente da sua boca, mas entrecortadas de diferentes lugares, do próprio ar que ela secara com a sua aparição – inclusive verifiquei em mim uma hemorragia nasal como consequência – e foi tudo, desapareceu voando e dissolvendo-se contra a própria parede, sendo que o que se seguiu foi a explicação completa de Tupac do que tinha acabado de se passar, posterior ao estado completo de choque em que se encontrava e referindo que é perseguido, por esta esfinge em particular, desde que está na Mina, e que ela faz-lhe sempre uma pergunta à qual ele não sabe responder, sendo como bem se sabe e no seu caso particular não seria excepção, a morte certa mas que quando está sempre prestes a morrer liberta uma qualquer filosofada de primeiro grau de gosto duvidoso, e a esfinge entende a sua resposta como verdadeira e parte, sendo que é que o próprio medo que o impede de formular uma qualquer resposta apesar de como me disse desconfiar, há já muito, muito tempo, que poderia bem dizer o que quer que lhe apetecesse que a esfinge provavelmente, aceitaria sempre tudo como uma resposta suficientemente certa ao que lhe perguntara, nisso mesmo assim, não me meto. Assim a esfinge desapareceu e consegui compreender esta explicação vinda de Tupac em completo estado de choque;
“
- Gostas de ácido sulfúrico?
- Hã?
- De ácido sulfúrico. Gostas de ácido sulfúrico?
- Eu? Se gosto de ácido sulfúrico?
- Sim. – Disse-lhe Tupac, com um estranho brilho nos olhos – de ácido sulfúrico. Gostas? De ácido sulfúrico?
- De – não. Não, não –
Tupac exalava um cheiro intenso a limão (quase doce) da careca preta cheia de gotas paradas de suor, enquanto fitava o chão parecendo estar a tentar ouvir alguma coisa.
- O que –
E assim Tupac partiu. Preferiu fugir a matá-lo, supôs. Fugiu a correr. O resto das conversas que eram suposto ter tido Vivelti não
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pôde supor lamentar. Não o sabia, mas Tupac era perseguido por fantasmas. Vozes que Vivelti não ouvia e um modo de estar e de existir que não entendia. Virou no corredor que se bifurcava num poço escuro profundo numa névoa de carne vaporosa e outro que estava carregado de estalagmites estupidamente irregular.
Irregular.
Do diário de Vivelti, pensou escrever: fiquei sozinho outra vez.
Algo caiu do tecto. Parecia mel. Era pegajoso e amarelo só, e doce. Sentiu o líquido lento pelas mãos e os dedos colaram-se, enquanto um vento diferente - . Quando voltou a olhar em frente, estava no deserto roxo.
Este era o deserto que tinha de percorrer. O Deserto de areias roxas e céu roxo, o deserto onde o vento soprava, nem ameno nem fresco, e onde o Sol, escondido ou não existindo (sim, podia estar noutro planeta; podia estar noutro planeta de outra galáxia, e, quem sabe?; se a sua nave se tivesse avariado; se tivesse quatro braços. Se entendesse porque tinha de percorrer o deserto roxo para chegar a uma qualquer cidade – tendo uma missão. Ou estando perdido apenas porque queria estar perdido, e queria percorrer o deserto roxo. O Deserto Roxo. Não perderás a vida no Deserto Roxo, sabia sentir no sopro dos ventos, e da maneira como a areia roxa, leve, lhe saltava dos pés que, sim, começaram a caminhar em frente.
Ao longe via ruínas de pedra pretas, enterradas na areia grossa. O propósito das ruínas ultrapassava-o; assim se age quando estamos numa zona cujo próprio presente se desconhece. O Sol existente parecia ser uma mancha diluída, verde, esfacelada, atrás de um céu roxo. As nuvens roxas passavam e não passavam. Por vezes via paus verticais no chão, altos, com fios de cordas e pano a voarem, presos a esses mesmos paus. E passou pelas ruínas e nunca sentiu tarde, e era sempre de tarde e nunca viu o sol. Só um céu roxo, no Deserto Roxo. E foi aqui que se sentiu verdadeiramente um viajante.
Sim, passaram as eras. O seu traje adaptou-se pelos fracos, bífidos ventos, por vezes do Deserto, transportando a roxidão, e a sua boca ficou tapada. Os olhos estavam protegidos pelos espectómetros – que perderam por completo o conceito e o significado iniciais, servindo agora para proteger os olhos da areia. A sua capa voava. Horizontal ao chão e perpendicular aos seus ombros, indicava-lhe o caminho com os seus tentáculos a esticarem-se em frente, entre os braços e o tronco, e dos dois lados da cabeça, ou deixava-se como rasto perene do caminho que Vivelti ínfimos momentos antes percorrera. O tempo tornara-se, agora ao contrário do espaço ou dos seus pensamentos,, um borrão. Mas as tardes infindáveis e as noites curtas e desertas de vida hostil sucediam-se, e o céu com as estrelas brancas, atrás das nuvens finas verdes e laranjas contra o céu antracite eram as mesmas, e dispunham-se, sempre, nas novas constelações que Vivelti já observara que aquele céu tinha.
O Deserto Roxo.
Sim, por momentos quis chegar ao fim do Deserto Roxo e achar a cidade que – julgava – sabia existir. Teria que haver uma cidade na fronteira do Deserto Roxo, uma cidade apenas, não necessariamente mais civilização, naquela parte inteira do planeta – no continente inteiro, no planeta inteiro talvez. Só um enorme e gigantesco Deserto Roxo por todo o planeta que – como presente de um futuro que, no passado, estava cheio de vida, agora estendia-se, areias e céu; ruínas, correntes de vento. Falta de clima. Tudo isso, pelo mundo inteiro. E uma cidade no fim, talvez já nem da civilização original, talvez apenas uma outra, a que sobrou ou a que encontrou este local, e, enfim – à mesma prisioneiros? E Vivelti parava e olhava as estrelas em cima de grandes dunas roxas com todo o céu por cima dele; ou determinava-se a contemplar a imensidão que já tinha percorrido do Deserto Roxo e o que ainda existia, em frente, para percorrer do Deserto Roxo - sem nunca ter a ideia de estar perdido - em cima de uma coluna de pedra cilíndrica com gravuras e símbolos , enterrada na areia.
Esse mel que tinha sentido - por vezes parecia que ia pingar do céu, das nuvens transparentes e finas e das auroras boreais em tonalidades de laranja e verde, na noite, contra as estrelas minúsculas, dissolvendo-se todas essas singularidades bem precisas em mel, numa gota gorda e grossa de mel, e por vezes parecia que o Deserto Roxo ia acabar, com uma enorme gota de mel a cair do tecto; mas não chegava a acontecer essa inconstância, e a gota de mel nunca chegou a dissolver o céu, ou o tecto da Mina. E o céu continuava vasto e imenso, e longe. Demasiado Longe de Vivelti, o viajante. E assim continuou a percorrer o Deserto Roxo, sem uma certeza concreta do seu início, ou fim; aliás, tinha a certeza oposta, que não acabava, violentamente não acabava e permanecia enquanto ele continuasse a percorrê-lo; mas nunca se repetindo; vasto apenas de mais. numa das noites encontrou os destroços de uma nave caída, negra, queimada, parcialmente enterrada na areia roxa indiferente. O seu ocupante, se morrera, fora já desfeito e dissolvido pelas areias do deserto. Se não, também as areias o tragaram; e Vivelti sabia que nunca o iria ver. Continuou então, apenas a andar. (Coisas como) A fome e a sede eram passageiras como as aragens de vento que por vezes sopravam. Torres, pretas e sem entradas, avistavam-se por vezes ao longe; fortes abandonados, ruínas
No deserto vasto, vasto como os seus sonhos e as suas visões dos fins impossíveis para este mundo e o outro onde pertencia: o céu, à noite. A Areia Roxa.
Sim, subitamente: o céu dissolveu-se mesmo, o mel espesso espesso tão espesso como a fúria de todo o céu tragar pelo menos pela forma como o tragou deixando apenas atrás de si, opaco, um ponto negro calcinado já do tamanho real já não maior do que o que devia ser, Vivelti pensou Fui uma vítima de novo, Vivelti foi uma vítima do céu, desabou em cima dele numa gorda e insolente gota de mel que lhe cobriu, lentamente, enquanto caía, depressa demais para conseguir evitá-la, cansado demais para perceber como o mel era o mel, grosso, soporífero, amarelo de cola afogando-o, a cara, os óculos, o cabelo com cristais granulosos nas raízes da cabeça; a cinza que lhe assolou a garganta à medida que o mel se transformava de novo. Enquanto caía, a confusão entre os amarelos do mel e das luzes presas ao tecto da Mina: ainda, de novo completamente presente, e o tossir desengonçado, estupidificado no chão húmido de mais um corredor qualquer.
As luzes apagaram-se, e na frustração de tirar a frustração da cara, de se sentir ainda perdido, de não compreender, de bater apenas umas três, quatro vezes com os punhos contra a pedra polida, com a capa e a roupa a enrolarem-se à volta da sua carne como inimigas, depois de dias inteiros a caminhar por mais um deserto falso, com os músculos das pernas retesados, com a boca e o rosto arrepanhados da poalha invisível do Deserto, e os olhos cansados de tanta [tranquila] desolação e nada verem, sentindo um prenúncio de fúria que viria depois do cansaço, do cansaço, da frustração;. Adormeceu com o coração a palpitar.
Pretendemos cobrar os nosso falhanços mesmo que as entidades a quem o tentamos fazer, e não raro tomamos o temerário e fútil objectivo de o fazer à Vida em geral, mesmo que saibamos que não o conseguimos meramente por um sentimento de vingança a nós próprios ante à impossibilidade de, talvez, não nos termos feito valer quando seria suposto, não tendo nada que nos convença que, de facto, sim, falhámos (e cobramos) porque somos fracos mas não é culpa nossa sermos fracos. fracos seremos sempre, poderemos é ser menos fracos ou mais fracos do que os outros que também cobram a tudo e a todos a sua própria impossibilidade inerente de serem alguém, algo que seja precisamente o que pretendem a sua singularidade de vida ser, mas paciência, alas, assim, por uma razão ou por outra, se ficou pelo caminho. Que não se iludam: é sempre "por uma razão ou por outra". Sorte teve Vivelti na sua própria solidão; é talvez certo que não se sairia tão bem se por alguém estivesse acompanhado, e, ao tentar chegar aos lugares recônditos - e seguros - da sua psique, com o silêncio e reflexão forçados que a solidão lhe impôs, tal não lhe fosse permitido pelo companheiro. Ao acordar, no chão da Mina tão sólido e húmido e com luzes em lâmpadas da já familiar luz fraca e amarela, não gritou de frustração ou desespero perante a incompreensão absoluta sobre o que lhe estava a acontecer, a falta de um plano, ou o menor porquê que se lhe poderia estar a surgir e surge com extrema violência, em pluralidades. Doem-lhe as articulações quando se levanta, agarradas aos panos diferentes com que se veste em confusões de castanho, molhados, a arrastarem-se preguiçosamente pelo corpo com o suor salgado e adesivo de quem dorme. Ou dormiu; ou perdeu a consciência. A sacola pinga para o chão e deixa-se estar enquanto se senta, e, com movimentos dolorosos, se encosta finalmente a uma qualquer parede do corredor, para aí permanecer, tirando os espectómetros dos olhos.
Não há tempo para desenvolver técnicas de meditação surgidas da apatia e da solidão. Mas é possível, com a mente leve e já descrente, conseguir, ainda assim, compreender nesses começos de delírio as regras essenciais de todas as coisas, de determinadas coisas pelo menos, as que nos calharem passar pela testa, pela parte de trás do pescoço a afastarem-se já, mas compreendemo-las fugazmente e Vivelti compreendeu por momentos uma parte da Mina e decidiu querer, Quero um lugar para sair daqui, quero abrir uma porta na parede feita de céu, levantar-me e não cair, atravessar o céu numa porta e como quem desenha o raio de um círculo numa imagem dupla a parede desenhou-se na anulação de si mesma, a porta do céu a mando de Vivelti abrira-se. Enquanto se levantava para a atravessar sem sequer a questionar podia acertar da sua autenticidade apercebeu-se dela mesmo com a visão de algumas nuvens brancas ao longe, em formações de castelo e flutuando para leste, com o vento, É só um céu artificial, e Vivelti viu uma mulher enterrada num monte fértil de terra porosa e revolvida a ser comida por larvas e a gritar algo perfeitamente muda e viu que essa mulher era mãe de alguém, mas não era real porque era uma visão sua e não da Mina e nesse céu viu ao longe um minúsculo ponto atrás de nuvens com torres e era uma casa e dessa casa fugiu um outro minúsculo ponto negro em direcção a um solo que não se via e a questão era se estava a voar ou apenas a flutuar ou se nunca (e ainda) teria saído daquela parede naquele corredor mas ao mesmo tempo dizia, não isto é real porque eu assim quis vir para este lugar, eu quis sair dali e sei o que estou a fazer, e a questão é se saberia de facto, se ainda sentiria o sítio onde estava como mais uma porosidade facilmente quebrada.
Sentiria?
Agora o céu mudara. Na tentativa estúpida e fútil de tentar perceber como voar ou deslizar pelo ar numa viagem descontrolada, deixou-se de novo vencer ou pela dúvida, ou pelo cansaço ou por ambos, pois qual é o que chama qual quando os dois estão tão intimamente interligados?, o céu rompeu-se. Mais um sítio porra, foda-se! Quis gritar o seu cabelo desalinhado e o seu semblante de fúria. A sua transcendência durara mil anos. mais talvez, nunca datas certas. Agora, o jugo da realidade era de novo tão grande que, perante o quadro que lhe aparecia à sua frente - vários corcundas e trissémicos a tocarem trompete e saxofone, com um enorme rasgão no meio da tela, e as palavras a roxo a brilharem na parede com uma inscrição infantil a dizerem "Vivelti, és o único que nos podes ajudar a recuperar o pedaço de tela perdido, e se o fizeres dir-te-emos uma forma de saíres desta Mina", a reacção que lhe saiu de rajada ilustrada com um dedo do meio esticado na direcção do quadro foi um "Fodam-se!", e seguiu em frente ignorando o ignóbil pedaço de arte. Talvez um dedo em riste.
Se bem que as cornetas nas quais estavam a soprar eram interessantes, e Vivelti nunca os tinha visto antes, mas não deu mais tempo nisso, o céu dissolvera-se como sempre fizera assim e só lhe restava adiantar o passo, uma vez que estava de novo perdido dentro da Mina num sítio qualquer, totalmente não-linear.
Queria dizer: ao ajoelhar-se para inspirar um bocado de ar fresco com a boca toda aberta, sentira um sabor de frescura com o sabor a noite e a cemitério, com o sabor à vilazinha onde entrara há, tanto tempo atrás com o seu amigo e o Professor, um sabor fresco e com um odor ligeiramente pictórico, uma névoa, claro, mas seria possível também ter uma cor - não. infelizmente não. Mas respirou, respirou a tentar lembrar-se para onde iria – para cima ou para baixo?, uma vez que o corredor não se bifurcava e de cima tinha vindo ele. desceria... desceria cada vez mais para o coração da Mina, ele e só ele avançando por aquele pequeno corredor estreito com as esparsas lâmpadas amarelas, sempre as mesmas lâmpadas persas por fios ao tecto. E. Enquanto andava o ar ficava progressivamente mais frio como uma raiz quadrada; as paredes estreitavam-se como uma função (de…–). -7. A escuridão parecia invadir a escuridão tremeluzente das paredes, o opaco, contra o fosforescente. O fosforescente contra o opaco. Vivelti continuava andando, mão na correia de pano da sacola, já sem sentir a aragem diferente de um novo salão com diabólicos problemas matemáticos que testavam a sua lucidez e capacidade para subverter a própria realidade, mantendo assim a sua vida; ao longe, uma falsidade de um cheiro de flores de limão... Entendia-o nos ossos, era-lhe dito com cada gota de água que caía nas poças da Mina. Tinha-se tornado tudo mortalmente sério, alimentado por uma espécie de medo tranquilo que, mesmo perante a dificuldade da Tarefa que lhe era apresentada, não o bloqueava ou fazia-o lembrar-se de que ainda era apenas um miúdo; Não pedindo mais do que o que lhe aparecia à frente dos olhos que oravam preces incapazes de deslindar os mistérios noutras frequências, como a luz ultravioleta – encarava toda a situação difícil de acreditar e de não surpreender com a resignação de que não havia outra alternativa, e se existia à frente dos seus olhos era porque ainda seria fisicamente possível, presa ainda a um nível de realidade lógico (que, porém, Vivelti ainda não compreendia). Como se fosse mais uma tarefa que um homem corajosamente cumpriria. Mesmo uma destas dimensões. As teclas dos órgãos, gotejando, a água fazendo cumprir os seus desígnios de sonoridade inquietante. Respirava-se a humidade colada ás paredes como um cansaço podre, mas fresco. Sem sexo designado previamente. O arquétipo de sonho continuava.
As paredes estreitaram-se até não conseguirem andar duas pessoas lado a lado, e o tecto baixou-se até pouco mais à altura de um adulto. Cheirava menos a humidade. A Mina mudara novamente. A sua cor laranja e húmida deu lugar, naturalmente, mas quase subitamente (claro, subconsciencializou Vivelti) a uma luz mais escura, desaparecendo a anterior,, sendo substituída em concordância com a suposta noite; um azul-escuro e uma claridade que pareciam vir de uma janela fina, mesmo na esquina da bifurcação da qual Vivelti se aproximava. Vivelti chegou a uma bifurcação. Agora o silêncio era muito maior – quase absoluto, e real também. Suspendera-se a arritmia dos pingos límpidos de respostas. Para a esquerda tinha mais um corredor que descia suavemente, onde se encontrava, de novo, a característica cor laranja e humidade da Mina, impregnada nas paredes, na normalidade subjacente ao labirinto desesperante. Para a direita, uma escada em caracol de degraus íngremes e bastante estreita, com a nova luminosidade, humidade e silêncio que tinha acabado por envolver aquela particular zona – parecia tão interminável, tão sólida, tão, ou viva, quanto as outras. Vivelti virou para a direita. Subindo as escadas (em caracol). Apercebeu-se que a Mina estava, agora, a assemelhar-se mais a uma espécie de torre medieval, com algumas ameias com uma luz nocturna puramente artificial, uma vez que lá fora não existia a superfície. Vivelti tentou perscrutar o que era, espreitando pelas ameias; não conseguiu ver nada a não ser a artificialidade de uma noite, o que era desconcertante. Com aragem fresca e tudo. Essa noite representada “lá fora” não existia, e continuava a não existir enquanto Vivelti subia os degraus da Torre e ia espreitando pelas frestas no lado direito da parede. Não havia saídas para a esquerda ou para a direita. Subiu até ao fim da Torre. Não havia a praia nem a falésia entre o momento do início de uma tempestade e a iminência de uma noite. O corvo silenciara-se para sempre. Voara para a própria mentira que também fora. Então os seus pés continuaram a dizer subamos.
O fim da Torre dava para uma pequena sala em chão de longas tábuas de madeira, verticais. Havia algumas janelas, frestas, entradas nas águas-furtadas, que permitiam deixar entrar mais claridade falsa da noite, com o cheiro da noite, e o fresco da noite falsos. O fundo da masmorra estava encoberto por escuridão,; mas presumia-se o fim. No fim da sala, ao fundo,
viam-se os contornos de um homem escondido na sombra. Agrilhoado a uma escuridão pelas mãos. A cabeça, pendendo. A luz da noite, revezando-se nas penumbras. Era um homem. Quieto como um homem vivo. Imóvel ou pagado como um homem vivo.
Seria a realidade mais cruel do que poderia supor? Seria obrigado a falar. Não havia nenhuma placa de madeira presa à corrente do seu corpo, com o seu nome, sem pressa. A escuridão ondulava e passeava-se, como um sopro lânguido, pela cara do homem loiro e gordo. E cicatrizes antigas viam-se ainda na sua testa e olhos, impedindo-os de os fechar na sua totalidade. O homem preso e agrilhoado nunca pôde mais fechar os olhos desde que as cicatrizes coagularam entre a carne e a secura das formas. Vivelti sentia um cheira a cinzas húmidas no ar.
Todo aquele lugar lhe pareceu uma memória física. A Torre abandonada nos confins de uma noite que não existia, no enorme vazio de uma Mina infinita. No último andar. E agora era o homem que olhava para ele, com os olhos – quase fechados? Suporia tratar-se Vivelti de uma alucinação – enquanto sentia o chão de madeira nas botas, olhava para a janela que mostrava uma noite estrelada, lá fora, e fria, quase amena, numa brisa fraca / fazia ondular as cortinas rasgadas das janelas abertas. Escancaradas contra a parede.
E o homem estava acordado ou acordou, reparou. Rapidamente, chegou-se a ele e ajoelhou-se e amparou-lhe a cabeça, como forma imediata de prestar-lhe cuidados, ao mesmo tempo que perguntava, – Está bem, quem lhe fez isto?, tentou atabalhoadamente agarrar as correntes frias, sentindo-lhes a força e procurando um aloquete. O homem deixou pender a cabeça e quase sorria, talvez,, mas na penumbra, Vivelti não o conseguia confirmar. – Como se chama? O que é que lhe aconteceu?
- Eles disseram... – num fio murmurado, com a cabeça apoiada num dos seus ombros e os olhos fechados até ao limite – eles disseram que eu pagaria pelos meus actos...
O estranho aqui sou eu, pensou. Olhou com a face obliquamente para o homem. "Como se chama?"
- Liberace
;
- _
Estava nu tirando os pedaços esfarrapados do roupão rosa que lhe estavam agarrados à pele sem pêlos.
- Ouça-me. Como é que euA chave está com o... hipopótamo – disse Liberace.
- O hipopótamo? Quem é o hipopótamo?
- O hipopótamo tem-na... tem a minha chave. Das... correntes – suspirou. Vivelti olhou em volta., e reparou numa porta de madeira atrás do corpo glabro de Liberace coberto com fiapos rosa de tecido e pelo.
- Hum... sem ela não o consigo libertar?
- É impossível
O homem nú que Vivelti segurava nos braços hesitava entre a consciência e a inconsciência, e, A noite artificial permanecia lá fora. Apeteceu-lhe perguntar ao homem moribundo se ela ali permaneceria para sempre; se nunca deixaria de ser noite, naquele lugar, ou se seria sempre noite enquanto não o libertasse - ou não voltasse para trás, ou entrasse pela portinhola de madeira decrépita, assomando, de novo, num lugar completamente diferente. Havia qualquer coisa de muito estranho - e autêntico, naquela noite.
- Acorde. Ajude-me; por favor. Estou perdido. Preciso de encontrar os meus amigos.
acre ávido.; de improvisação.
- Onde estamos?
- No fim da rua do Mal
- Não! - Vivelti agarrou-o pelos ombros. - Não. Ouça-me. Onde estamos? Que sítio é este? Responda-me. Sabe onde estão os meus amigos? Não preciso desses clichés de merda. Eu estou dentro de uma Mina Eu sei que é real, eu sei que tudo isto é real, eu estou a agarrá-lo! Portanto
- Calma
Liberace deixou-se levar por um cansaço de absolutamente nada. [Mas] a sua cabeça descaiu; o corpo poderia ter sido arremetido por um tremor
- Liberace
- Calma –
Parecia que a cada momento o velho de cabelos loiros poderia dar o seu último suspiro. Vivelti agarrava-o como podia. A custo ia falando. Não me consegues libertar... Não tens a chave. Esta não era o fim da rua do mal... Perdoa-me... se calhar só eu... a sinto assim.
De suspiro em suspiro Liberace ia desfalecendo. E a noite artificial ou não a cada momento fazia sentir mais a sua presença.
- Houve um homem...
Liberace deixou pender de novo a cabeça em direcção ao chão. os seus pêlos azuis contrastavam como seu perfil contra a janela aberta. "Houve um homem que encontrei na Mina. Chamava-se Tupac. Ele disse-me que só conseguiria sair da Mina se encontrasse o Tigre Azul, à entrada de um pântano. À entrada do pântano..."
- Ha...! haa, - Liberace sorria desfigurando a sua face através das cicatrizes juntas pela carne coagulada - ai sim, O Tigre Azul, no pântano,
- Ele disse-me que, tinha sido o Hipopótamo cor-de-rosa a pô-lo aqui, para, para encontrar o Tigre Azul...
- E quem te pode afirmar isso, com certeza? - Liberace suspirava, tentando encontrar, em vão, uma posição confortável, torcendo-se nas grilhetas de metal – Quem não te disse que o, Hipopótamo não estava a mentir-lhe, ou que o pôs aqui só para o poder matar, ou,
- Conhece-o?
- Sim, conheço-o, – Sorriu
- Sente-se bem?
- Não, rapaz, – respondeu – não me sinto nada bem, estou, a pagar pelos meus crimes, como me dissseram
- O...
- O hipopótam,. É um demónio, rapaz, ouve-me - Fitou Vivelti de frente, que se afastou para contemplar a noite artificial, com as mãos no parapeito da janela a ser sentido pelo vento - não confies, nele
- No hipopótamo? - Vivelti olhava para a janela.
- Em nninguém, Nas histórias ou em mim, Ouu em
- Ele disse-me que estava a tentar encontrar o pântano há anos - disse, absorto a olhar para as estrelas brancas - para - sair da Mina. Eu estou aqui há... - (há quanto tempo?), como é que eu o vou achar -
- O quê – Liberace olhou-o de frente, fixamente para as costas.
- Hã? - Vivelti virou-se.
- O quê – repetiu -, O que é que vais achar?, O Tigre Azul, ou o pântano?, Ou o hipopótamo
- O que é que isso interessa.! As coisas escritas nas paredes – são dele, não? Do hipopótamo?
Um brilho passou pelos olhos de Liberace.
- De qualquer modo... Como é que eu saio daqui. - Ajoelhou-se junto ao prisioneiro que para ele olhava, a custo, acorrentado – Sabe? Sabe como consigo sair daqui desta Mina e encontrar os meus amigos?
- Eestamos, Nna Mina – suspirou Liberace. A sua cabeça pendeu em direcção ao chão – Não confies, nele, em ninguém – Não acredites que, o pântano é a casa do Tigre Azul pode, não ser
- Está assim tão moribundo. - Vivelti virou-se de novo para a janela.
- Ouve-me – pediu Liberace. Vivelti olhou para ele – Não confies no hipopótamo, Nem no Tigre Azul, o, que quer que ele seja. Confia em mim, é verdadee
(Concentra-te.), pensou.
- É verdade o quê?
- Que podes sair... pelo pântano – respondeu Liberace, em esforço crescente - eu sei que é, Ttu podes sair do, Pântano pela Mina. Ou da
- Como? E como é que eu chego até lá?
- Pela porta atrás ddde mim... podes sair da Mina pela porta atrásde mim, Ouve-me. - Vivelti aproximou-se dele – Ouve-me. Tens, que chegar ao pântano, é antes de... um pomar que não devia existir,
- Porquê?
- Porque as raízes das macieiras, Já estão no pântano. Nas, águas pantanosas
- Concentre-se. Como é que eu chego ao pomar? Como é que eu sei que cheguei ao fim da Mina?
- Tens que encontrar alguém. Alguuém que, - Tu não és daqui, Sai por, esta porta. Os teus amigos já estão a ir mas, num outro sentido no, sentido contrário?,
- Amigos, quem?
- Um rapaz como tu e um mágico e um,
- Miguelti? - Vivelti levantou-se e olhou absorto para Liberace - Ele chama-se Miguelti.
- Miguelti
"Do Diário de Vivelti
Não tenho certezas de quase nada e não interessa verificar as coisas de que certeza tenho, porque nem disso tenho a certeza toda mas ainda posso raciocinar da seguinte maneira: não interessa, ainda há indiferença em mim suficiente que me permita acreditar que posso passar por tudo isto como um cão por vinha vindimada. Do que já relatei.
Tenho de ter a mais absoluta calma, se fosse neste momento o velho de nome Liberace que encontrei disse-me que encontrou há alguns séculos atrás entre os seus delírios o Miguelti e estavam com ele mais companheiros também empenhados em escapar da Mina pertenciam à trupe do Circo do Paraíso apesar de Liberace me ter dito que usavam outro nome para enganar viajantes, mas se eles estão presos na Mina, quem são, se também queriam sair, pergunto-me, que não estava a tentar encontrar o pântano disse mas o fim da Mina que Liberace diz que não existe, mas existe, tudo tem um fim, espero encontrá-lo no caminho à minha frente procurando depois ir ajudar o Professor.
Mas tenho de sair daqui e já sei como. Acabei de atravessar a porta e rastejei por um túnel escuro (que parecia ter a consistência de madeira), saí por outro buraco depois de alguns minutos a rastejar em direcção à luz e agora estou aqui, a Mina está a pulsar à minha frente. A parede suada parece uma enorme membrana muscular em padrões repetidos por cada segmento oblíquo. Liberace desenhou-me um mapa e contou-me os segredos que anotei aqui para nunca me perder. Vou até ao pântano ocre, antes do pomar, e o fim ou o início deste lugar lá encontrarei.
"
, E o corredor escuro parecia abrir-se à sua frente, como a desfragmentação de um mosaico. Deixando a Torre na noite falsa presa para trás. Tentando chegar ao pomar à entrada do pântano, em tons de amarelo ácido. Como Liberace lhe tinha dito. Passando por salas e corredores. Depois de túneis e galerias. Deixando para trás uma divisão com a estátua decepada de uma guerreira com seis braços, em ouro. A cabeça não se encontrava na sala. Abrindo uma porta através... do subtil cálculo umbral de combinações de cores como a equação que,... – e a porta abrira-se. Passando por paredes arranhadas. Outras nem tanto. Frases escritas em alfabetos – que Vivelti não compreendia, naturalmente. Acompanhando-o uma estranha, e neutra melodia de raspares, chios de correntes de ar, sopros abafados. “Segue.. a aranha até à sua toca” balbuciou o velho em choque. As palavras de Vivelti eram tão estranhas quanto plausíveis. O que encontraria quando chegasse ao pântano – depois do pomar? A origem do vírus ou bactéria Real que parecia ter contaminado a Mina? Desconfiava que não poderia encontrar o Tigre Azul para este lhe indicar a saída – ou dizer-lhe que nunca existira uma, e o caminho para trás, esse, tinha mesmo ficado irredutivelmente tapado por um deslizamento de pedras; nunca. Parecia tudo tão longínquo, agora. Talvez, pensou, enquanto chegou a um beco sem saída, num corredor largo, e à sua frente encontrava-se um humanóide crucificado, ao contrário; de cabeça para baixo. As suas asas de pele e penas longas estavam empapadas em sangue morto, por dentro, e esfacelavam-se quase no chão. Sim,, talvez uma infecção. A cruz era feita de dois espigões de metal preto. Estava também ao contrário como o humanóide. Nos pregos nas mãos e nos pés o sangue era seco. “Esfinge 4”, escrito num papel por cima dos pés pregados e inchados de sangue preto. O pântano assustava-o. Como saída possível da Mina – porque é que, mesmo subindo, subindo pelos corredores, sentia que descia cada vez mais? Atrás da cruz a parede desfaleceu até à transparência, e Vivelti continuou. Pensou no seu amigo e no Professor, mais uma vez. O que seria deles? O automóvel vindo do futuro, borbulhando ares de outro tempo da sua pintura comida e estalada, frágil. Passou por uma enorme galeria, onde o ar era fresco, com algumas caravanas abandonadas e tendas montadas, mas com o pano a ceder já em alguns lados, algumas estacas morrendo hirtas e oblíquas espetadas no chão liso. Das caravanas Vivelti pareceu ter visto olhos que espreitavam assustados, ou seriam apenas relampejos de luz nas cores velhas e lascadas das madeiras das caravanas, junto às janelas de vidro tapadas por panos, e não fez caso deles. Com dezassete saídas à sua frente, dezassete túneis, cada um levando-o a um outro lugar onde continuaria tão perdido como antes. Escolhe o túnel magenta. E um túnel ocre aparecia à sua frente, num dos cantos da galeria, e Vivelti atravessou toda a galeria passando pelas tendas e caravanas de circo abandonadas, e entrou pelo túnel ocre.
O seu trono era feito de carne. Os membros, pedaços de dedos de mãos, e de pés. Alguns olhos esvaziados e ossos saídos, agarrados ainda a bocados de carne viva. Liberace sentava-se, com um braço recostado de cada lado, e uma coroa de papel dourado-velho recortada em picos triangulares em cima da sua cabeça, com o seu vison cor-de-rosa a servir de manto. Enlameado e castanho nas pontas. Com manchas de sangue em borbotões em riscos, ou círculos concentrados, pelo manto. Mas Liberace não estava sentado no trono. O trono estava vazio. Voltado para a parede, virara-se para Vivelti, quando Vivelti entrara nesta sala da Mina. Uma porta atrás e uma porta à frente, ao fundo, ambas com maçaneta. E o trono de carne que sentava Liberace, o trono que, ao vê-lo, Vivelti soube ter sido palco de grandes deboches e festas descontroladas durante dezenas de anos naquela Mina, a esticarem-se até aos fins de uma melodia certa, não demasiado fina, com bailarinas com reduzidas roupas de metal e bolos em torre de todas as cores, animais sarcásticos e alguns até sádicos, vestidos e excitados e falantes, com Liberace no meio a atirar farrapos de papel colorido para o ar com ambas as mãos gordas e muitas moedas que, apesar de não terem qualquer tipo de valor real dentro dos confins daquele espaço infinito, fechado e absoluto, eram ainda assim agarradas frenética e viciadamente no ar por todos e todas, encontrava-se vazio. Vazio, como um eco desses tempos em que Liberace tinha sido um rei, um rei de alguma parte da Mina em particular, um lugar que tinha perdido, há meros dias, ou algumas décadas. E o trono virou-se para Vivelti quando este entrou na sala e fechou a porta (uma única lâmpada acesa de luz amarela no tecto, por cima do trono), e ficou de novo imóvel com a solenidade de todas essas histórias, como se observasse. Ficou virado para si. E essas histórias, no seu reflexo do eco longínquo, longínquo... desses tempos, desvaneceram-se no ar. Como um perfume suave demais. Demasiado fraco.
Então Vivelti passou pelo trono sem olhar para ele, virou-lhe as costas. E, sem ver se ele se tinha de novo virado na sua direcção, foi até ao fim da sala, e saiu, abrindo e fechando a porta atrás de si.
Primeiro o resto, só depois a entrada no pântano. As árvores baixas e retorcidas de madeira cinzenta e reticulada. Um abismo agora elevava-se de profundezas cegas para o rapaz, e distava entre os dois lados uns bons cinco ou seis metros. O ar que se elevava era grave e doce, e apareceu do abismo elevando-se no ar um arcanjo vendado com uma fita roxa a dizer Nãopassarásnãopassarásajudameajudamenãopassarásnãopassarás, os seus reflexos foram rápidos; – Saltou e agarrou-se ao seu corpo e às suas asas, e ao que quer que fosse que conseguisse agarrar ao manto ou aos cabelos, Pára imbecil que estás a fazer, larga-me larga-me, deixa-me
em paz mas Vivelti já trepara com uma rapidez impressionante para os ombros do arcanjo, que para não deixar cair a espada para o abismo só podia usar uma das mãos para tentar afastar o rapaz, e as suas asas bateram descontroladamente, virou-se para baixo, Vivelti saltou para o outro lado do abismo onde não caiu de pé –
E o arcanjo? Talvez ainda horrorizado com a possibilidade de ter sido tocado, elevou-se para o abismo que cortava a Mina como uma faca invisível vertical com as mãos na face cega, as asas fulgurantemente brancas, a dizer qualquer coisa mas não propriamente a gritar?, e lá foi ele, para a escuridão superior até se elevar tão completamente, que desapareceu,, caído de barriga para baixo quase imóvel estava Vivelti, que sentia ainda o mesmo ar adocicado a entrar e a sair-lhe dos pulmões, enquanto escutava o pingar da água nas poças de chão polido da Mina, e noutra quase exacta, mas não falsa linha temporal, Vivelti teria agarrado nas asas do arcanjo (mas) não teria saltado, e os dois cairiam pesadamente exactamente no mesmo sítio onde Vivelti se encontrava, e o arcanjo depois de alguns momentos de intenso nervosismo e paranóia com Vivelti a observá-lo, do chão, sem qualquer expressão na sua face, finalmente se acalmaria e os dois trocariam histórias um com o outro, com o arcanjo a contar-lhe de onde vinha, que era o Abismo, e aquela zona uma fronteira entre a Mina, o plano, e o Abismo, situada num plano inferior, já fora do controlo do Tigre Azul (o que era um Tigre Azul) e/ou de qualquer hipopótamo, locais distintos verdadeiramente, como só podem ser as coisas que têm inícios e fins destacados, (e ainda assim, como se cruzavam os dois naquele ponto, era verdadeiramente misterioso), e dir-lhe-ia que no Abismo não havia qualquer luz natural, apesar de archotes e fogueiras poderem ser acesos, e que todos eram cegos incluindo os seus principais habitantes, os Gaddocks, e falar-lhe-ia das casas com telhados e dos Cavaleiros, mestres em atravessar pontes entre os abismos no Abismo, e ensinar-lhe-ia a pescar, com as mãos, os peixes-manteiga, que, com as suas bocas e mais de dezasseis pares de dentes arrancavam os dedo a quem não fosse suficientemente rápido a agarrá-los, daí os Gaddocks não terem nunca os dedos completos das mãos – embora estes se regenerassem com o tempo. E o bolor era inteligente e falava, uma enorme entidade que se encontrava presente desde os quentes rios de lava até ás florestas de bolbos e líquenes esponjosos e às profundezas mais escuras do Abismo, onde os Gaddocks usavam portas de pedra escondidas na parede para fugirem aos Mutras, e o arcanjo e Vivelti decidiriam, depois de uma longa conversa, sentados no chão da Mina, continuassem a travessia de Vivelti juntos, renegando o arcanjo, porque podia mas nunca tendo tido a coragem para pensar nisso, o seu lugar de guardião de fronteira entre um sítio e o outro (embora nunca ninguém a tivesse atravessado desde que fora criado para esse propósito), mas mal continuassem, ainda não se tendo o arcanjo habituado a andar pelo chão, mal o resto da Mina se revelasse, a parte seguinte, o arcanjo tremeria, correria de medo, e desapareceria da vista de Vivelti de novo, de vez, sem mais voltar – porquê? A luz era demasiada. O Abismo não existia mais. A solidificação da sua própria psique nesta realidade não era possível. E foi assim que Vivelti nunca chegou a saber do ponto convergente entre a Mina e outro lugar diferente e distinto,, o Abismo nem de como caçar os peixes-manteiga dos lagos e rios do Abismo sem perder os dedos. E nunca chegou a saber que, na Mina, existia algo mais para além da Mina, e pelo menos uma outra saída. Levantou-se, disposto a tirar todo o ar doce do corpo, e continuou em frente.
Um bouquet de flores na Mina. Primeiro despedaçadas no chão às duas e três, amarelas. E depois, aqui, ali, nas paredes, das paredes afloravam as flores. Eram amarelas e grandes, de quatro pétalas assimétricas as primeiras. O que estariam flores a fazer na Mina? No tecto dos corredores, também, que voltavam a entrar em modo labiríntico. As flores espraiavam-se por um dos corredores que ia a direito e não pelos outros, que desciam, subiam, viravam repentinamente para a direita ou para a esquerda. Vivelti extraiu uma das flores amarelas da parede, que se soltou com um clic, e pô-la na bolsa de pequena da sacola, abrindo-a e fechando-a, e só depois tirou uma outra e cheirou-a, e cheirava vagamente a whisky e a... ossos frescos. Vivelti deixou-a ficar na sua mão que caiu ao longo do corpo, mas e se a flor tivesse efeitos alucinogénicos;, e se se perdesse na Mina por causa daquela flor para nunca mais voltar, perdendo o controlo das suas mãos e pernas e do seu corpo, caindo – como agora? – no chão da Mina rebolando e babando-se ou tomando o caminho errado – morrendo desidratado? – ajudem-me amigos que não tenho ajudem-me nesta forma e fase ridícula da minha luta por um propósito ajudem-me paredes húmidas de escárnio ajudem-me vozes confrangedoras na minha cabeça que se parecem com progenitores agastados ajudem-me, sons, sons do futuro, sons em ruído constante, ensurdecedor, as flores, as flores com cheiro a ossos frescos e whisky,
À sua frente o corredor permanecia cheio de flores. Vivelti decidiu que arrancar e levar consigo uma seria uma boa adição ao jardim de sua casa – certo que a flor até lá não murcharia. Com nenhum momento a mais. Certo de que teriam sido apenas fugazes pensamentos – ou quanto tempo terá passado? Medo da própria certeza era, um pouco, o que sentia e sentiu, mais do que uma vez, a face com as mãos – sujas, sim mais um dado?, não?, – à procura de vestígios secos de saliva, ou de baba. A incerteza acompanhou-o, pisando flores partidas no chão, arrancadas das paredes, ou caídas. Repleto. Repleto. Continuou em passos trôpegos muito provavelmente, pensou, sugestionados. Ou provavelmente, só.
As paredes da Mina brilhavam agora. Um sinal de que se estaria a aproximar?, ou sinal nenhum. Os corredores repetiam-se – e os salões – com uma cadência relativamente constante, serpenteando, subindo e abrindo-se, mas este novo brilho, amarelo como pedras cravadas nas paredes, fazia-se sentir como constante e imponente, um brilho que não era comum ao que, dantes, tinha atravessado. Mas depressa desapareceu de novo. E as paredes de novo ficaram dele despidas.
Encontrou um piano despedaçado – cordas dobradas, e a madeira partida, com a tinta lascada – no chão num corredor descaracterizado. Não havia sinais de quem o autor teria sido, e não perdeu tempo a observar o piano escavacado, uma vez que estava farto de procurar significado dentro da Mina em coisas que não tinham qualquer significado. Apenas anotou como um facto no seu caderno. “Encontrei um piano escavacado. Segui em frente.”
Também encontrou pelas paredes, como se alguém novo e diferente dele, outra pessoa tivesse estado ali e tivesse escolhido a sua peculiar forma de comunicar pelas paredes ou de encontrar a sua forma de sair da esfera do labirinto de minas escritos, "Venham ver em Montreux o duo" – riscado. "Um som fresco e novo não seria novo", "com melodias atónicas e atónitas eu percebi e eu depois morri". Os escritos estavam em tinta roxa e a dada altura eram só borrões atirados à rocha; "Em Lolapaloosa é que se está bem, não vemos o homem a arder o homem ardido tocha humana". Vivelti não conseguia extrair nenhum sentido das frases que lhe soavam a falsas. E não interessava. Ignorou-as. "Snare duplo??". Era inglês. Borrões sem padrão de irreflectismo.
Tinta.
A Mina abrira-se numa larga gruta, sem as familiares lâmpadas acesas. Mas sim uma luz azul arroxeada que vinha de uma fonte invisível do tecto e pouco iluminava Vivelti ou o seu percurso,, forte, mas escura. Vivelti parou para comer. Era um sítio tão bom como qualquer outro, agora que já se estava a aproximar do fim, de um fim que ainda não conseguia perceber quando começaria. As suas pernas cansadas abrandaram até parar. Sentou-se, no meio da gruta, olhando para o tecto; tentado perceber de onde vinha essa nova estranha luminosidade que mal se contrastava nas trevas, e tirando uma sanduíche embrulhada em papel da sacola. Em gestos precisos e lentos. Devagar, já sem pressas, tirou a sanduíche do embrulho de papel e trincava-a lentamente, e mastigava-a. O silêncio instalou-se nele e em toda a gruta. No escuro, sozinho, comeu a sanduíche em silêncio.
Acabou de comer a sanduíche, limpou a boca com a mão, e levantou-se, descruzando as pernas.
Era incrível como estava sozinho,. E perdido. Estava tão perdido agora como quando se encontrara do outro lado do túnel que desabara. Não o soubera antes. Olhou a gruta em volta, envolta num silêncio permanente. Era completamente indiferente estar ali, ou não estar. A mesma luz escura e baça, azul, caía do tecto e desvanecia-se perto do chão. Aquela gruta era só uma gruta vazia, perdida na Mina, e ele estava longe ainda, ainda muito longe, do pântano. Da entrada do pântano. E a luz azul-escura, forte, inundava-o de azul, e escondia o caminho à sua frente. Mas a cada passo que dava revelavam-se contornos de aço e de outras luzes dispersas – como a memória de um céu saturado em cores leves e baças. Era uma pirâmide no centro de uma cidade de arranha-céus. E, quanta saudades Vivelti sentia a observar a cidade do futuro ao longe – seria uma miragem, dos tempos que hão-de vir. A cabeça de uma mulher estava fixa, olhando um horizonte que ele não via. Metálica, esfíngica. O panorama do céu futuro continuava. E porque caíam lágrimas de Vivelti? Porque é que a sua angústia era tão forte que podia sentir o desvanecer de toda essa cidade que ainda não existia. Dessas memórias, plantadas por alguém – alguém – de tempos em que tudo se desvanecerá, e apagará, num local onde estátuas de mulheres em aço olharão o horizonte, os céus amarelos e roxos, as nuvens rebentando no céu, finas ou borbotões, e nada dirão, porque tudo será tão misterioso como sempre tudo fora. E a pirâmide ligará as luzes dos seus cubículos interiores, numa solidão de aço preto, contrastando-se contra o céu, lembrando-se os tempos imemoriais da tecnologia como uma entidade, e já não como uma mera factualidade. E a paisagem rodava sobre si; devagar. E num espeto de madeira, no meio de uma praça circular e vasta, vazia e fulgurante de branco e prata, estaria a estátua ritual de um ser empalado num espeto de madeira. E as caras das mulheres esfíngicas continuarão a olhar para esse horizonte; ignorando a cidade. E outras torres se destacarão contra o céu. Sempre inacessível;, torres vazias. Torres vazias também negras, onde o vento soprará entre e por elas, vazias por dentro e por fora. Abandonadas. Como se essa cidade fosse apenas uma construção única, e não um local; um local vivo, ou apenas um sítio. Talvez um templo. Somente isso mesmo, talvez. Uma memória. Um memória no presente de tempos passados, onde os seus únicos habitantes seriam as estátuas de mulheres de feições esfíngicas – no topo dos prédios, nas esquinas das ruas largas e desertas, nas varandas para o céu, observando. Apenas lá deixadas, a observarem essas mesmas memórias de si próprias. Mas apenas estátuas. Ou à espera de quem voltará.
Ou deixadas, ou criadas, para Vivelti, centenas de anos no passado, pudesse vê-las, e emocionar-se porque, de certa maneira, ele compreendia – e perceber que, ainda assim, tudo aquilo o ultrapassava.
Tudo aquilo não era só um futuro, como era muito mais.
A Mina.
Que lugar incompreensível.
A imagem projectada da cidade contra a luz azul-escura contrastava com ela, apesar de transparente. E do outro lado estaria a passagem – para outra gruta, para mais uma ponte subterrânea, para outro ou outros corredores labirínticos. E Vivelti teria de a atravessar, sem saber de onde ela vinha – e sem saber para onde ele iria. Mas cada passo era tão penoso, agora. Estava tão cansado. A cada passo que dava limpava as lágrimas à manga da jaqueta, e procurava aclarar a garganta que tinha ficado apertada de uma emoção que não soubera de onde teria vindo. A cada passo aproximava-se da cidade. E a cada passo sentia todo o cansaço que ganhou a atravessar todos os lugares da Mina por centenas de anos. Todos os desertos, todas as tempestades no mar. Todos os delírios e todas as perdas. E tudo o resto ficara para trás excepto o seu cansaço. E as imagens que os seus olhos viram.
E depois de ter atravessado a cidade banhou-se nas imagens e luzes do seu céu. E a claridade atrapalhou-o, portanto. E atravessou a imagem dessa cidade, mostrada pela Mina como uma projecção invisível.;
Mas agora o cansaço era forte demais. Tinha andado já tanto. A luz azul-escura voltou a envolvê-lo, e essa escuridão latente toldava-lhe a visão do caminho a percorrer – em frente. As paredes húmidas e limadas da Mina pareciam-lhe mais absolutas do que nunca. Quando se ajoelhou, as suas pernas cederem. Quando se apoiou com os braços e os cotovelos no chão e a capa, mais pesada do que nunca, o impeliu a deitar-se. Quando a tontura do cansaço e de um desespero já resignado o fizeram fechar os olhos para ganhar algumas forças. Quando perdeu os sentidos ao ver, finalmente ao atravessar aquela gruta, folhas ao longe de árvores a agitarem-se um pouco contra um vento que transportava uma luz clara e forte, algo brilhante. - Tudo mudara novamente.
Não havia sal quando as suas pálpebras se despegaram uma da outra, ardendo. Ardendo. Os seus olhos viram de novo a claridade, a luz. E estava quase morto como das outras vezes. ,Não estremeceu o corpo Mas desta vez sentia a morte perto, a rondá-lo de facto. Perigosamente perto, e a sua garganta seca, os seus membros desfalecidos observavam-no a si mesmo, e Vivelti sentia apenas o som rouco da sua respiração fraca em fios agudos. Notou que estava virado de costas. E ao abrir os olhos formas negras entrelaçadas em ramos escuros bloqueavam-lhe a claridade;. Uma luz brilhante, mas invisível – como se a luz proviesse de todos os lugares, reflectindo-se no chão e explodindo num onda contínua novamente em todas as direcções, de um Sol ausente. Cálida. Filtrada por rasgos de sombra que se moviam. E ao abrir os olhos, viu que estava debaixo de uma árvore.
A macieira. O pomar. Exclamações na cabeça por toda a parte. E o seu corpo – tão esgotado.
Onde tinha ido a Mina? Ao levantar-se, parecia-lhe, olhando para o horizonte do lugar de onde pensava ter vindo, existir – atrás das (névoas) – os contornos de uma rocha negra com uma abertura desvanecendo-se contra a erva e a madeira das árvores que cresciam à sua volta. Os arbustos, descontrolados.
Algumas aranhas pequenas cairam da árvore onde estava por baixo. E ao tentar levantar-se – sentiu um cheiro no ar igual ao do quarto dos sólidos vivos. Em frente olhou. a terra era verde das ervas rasteiras e amarela da água estagnada, e preta da lama. A morte rondava, ou ameaçava rondar. Chegara. O pomar, antes do pântano. Tinha conseguido sair da Mina. E em frente olhou de novo – mais névoas depois das árvores, a humidade podre as águas dos charcos e dos pântanos.
Levantou-se e voltou-se a encostar ao tronco da macieira onde estava, e esvaziou o cantil de água na boca e na garganta. Pôs-se de pé de novo e tentou observar o sítio à sua volta, enquanto se distanciava da entrada, ao longe, da Mina, e caminhava, trôpego, em direcção ao pântano. E já não estava excitado ou extasiado. Apenas, à medida que caminhava para o pântano ocre, perdia cada vez mais a noção de certas coisas. Como: Nunca se percebe bem quando começa de facto um pântano ou se entra nele, porque funde-se, como um buraco negro podre, na saúde da terra fértil, e corrompe-a com tudo aquilo que precisamente deveria dar vida. Mal se apercebeu, estava embrenhado quase nos seus limites. O sítio era estranho de tudo o que tinha encontrado. Parecia não se ter distanciado muito da Mina, Mas ainda não entrara no pântano. Ia deixando o pomar para trás. Podia sentir a terra lamacenta e as botas nela a afundar-se, como o aviso de uma barreira invisível.
Até que, finalmente, viu-o: ou julgava vê-lo. As árvores retorcidas abraçadas e fustigadas por ervas altas e arbustos cinzentos e amarelos. Ramos partidos ou inchados pela água. Mas – nenhuma entrada discernível. E tarde
demais, percebeu que já não estava sequer na Mina, ou propriamente no seu mundo: estava num sítio completamente diferente. E então o medo, adormecido, assomou-lhe tão urgente e imediata que estacou de forma absoluta no local onde estava. O medo, pulsando-lhe no peito! O medo, tremendo-lhe todo o corpo dentro dele! O medo, ao ver - que forma era aquela que parecia rondar Vivelti e que ainda não tinha reparado, atrás da vegetação? Que sons ritmados e pesados eram aqueles;, que - pareciam patas? Patas de um animal? - E ouve um ronco. Algo está ali perto! Algo sentiu a sua presença e talvez ainda não o tenha visto mas - sabe que está ali, ali um intruso nos seus domínios! Um animal selvagem, as formas a movimentarem-se entre a vegetação depois da entrada do pântano – um animal de grande porte, um animal grande e pesado. Os roncos, de novo.! - Vivelti sua, e – a morte, a sensação de morte. O animal está cada vez mais perto! E então, por uma chance súbita de lucidez, nas falhas de folhagem dos arbustos selvagens, vê-se um rasgo de pele rosada e molhada, e Vivelti vê os contornos de um focinho e o começo de um dente grande como uma faca.
Invocando toda a sua força para as suas pernas, quebra o jugo do terror; e, ao virar-se par trás e fugir, tropeçando e caindo na lama e levantando-se em pânico e continuando a correr sem olhar para trás, sente ainda um ronco, mais um ronco, perto, da coisa que sentiu a sua presença e procurava por ele, quase a encontrá-lo, perto de mais, o ronco e outro, e Vivelti foge, e continua a fugir mesmo sentindo as patas a ressoarem no chão, mais perto e mais longe, correndo, correndo sem parar e sem nunca olhar para trás, perdendo a sacola, vendo a entrada na Mina num buraco escavado na rocha, atirando de qualquer forma o corpo entrando de novo dentro dela, deixando para trás a entrada do pântano ocre e do pomar, desses lugares diferentes num outro mundo para correr;
E fugir, fugir à sua morte em forma da silhueta - demasiado perto para estar longe, demasiado perto - de um Hipopótamo
Parte Final